Em 1987, durante uma excursão do Grêmio pela Europa, Cuca e os jogadores Eduardo Hamester, Henrique Etges e Fernando Castoldi foram detidos sob a alegação de terem mantido relações sexuais com uma jovem sem o devido consentimento. Após quase um mês de detenção em Berna, Suíça, os quatro jogadores foram liberados.
Entretanto, dois anos após o incidente, Cuca, Eduardo e Henrique foram condenados a 15 meses de prisão por atentado ao pudor com o uso de violência. Notavelmente, Fernando foi absolvido da acusação de atentado ao pudor, mas condenado por seu envolvimento no ato violento. Vale ressaltar que, devido à política brasileira de não extradição de seus cidadãos, a pena não foi cumprida.
Em uma entrevista ao “Esporte Espetacular” em janeiro de 2021, Luiz Carlos Martins, o então vice jurídico do Grêmio, Cacalo, afirmou que apenas um dos jogadores teve uma relação sexual com a jovem, embora tenha sido presumida como estupro devido à idade da vítima, de acordo com a legislação aplicável na época. A defesa interpôs um pedido de revisão do caso, alegando que Cuca não teve a devida representação legal e foi julgado à revelia. Embora o pedido de um novo julgamento tenha sido deferido, o Ministério Público argumentou que sua realização não seria viável devido à prescrição do crime.
Diante desse cenário, o órgão propôs a anulação da pena e o encerramento do processo, uma sugestão que foi posteriormente acatada pelo sistema judiciário. A extinção da sentença condenatória resulta na restauração do status do treinador como presumivelmente inocente. No entanto, é inadequado afirmar que Cuca foi inocentado, pois não houve uma revisão do veredicto original.
Segundo o Dr. Leonardo Pantaleão, “O que aconteceu é que o mérito não foi reavaliado, simplesmente identificou-se um vício formal por ausência de defesa técnica e isso comprometeu o desenrolar do processo, e, consequentemente, gerou a anulação do mérito condenatório. Quando você tem a anulação, é restabelecida a presunção de inocência, mas afirmar que ele é inocente dependeria de uma análise do mérito, o que não foi feito. ”
Vale ressaltar que ainda que não existe julgamento à revelia na esfera penal. Isso porque o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, estabelece que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não prove sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para a sua defesa”.
Dessa forma, não existe a possibilidade de esclarecer se houve o crime ou não. No entanto, para um número pujante de pessoas, principalmente na passagem do técnico pelo Corinthians, foi considerado culpado, sem o direito de defesa, em um movimento cada vez mais recorrente e comumente chamado de “cancelamento”, foi pressionado a pedir demissão do cargo e até então está afastado do futebol para preservar sua integridade mental e de sua família.
A cultura do cancelamento refere-se à prática de organizar um boicote virtual contra indivíduos percebidos como desviantes, podendo resultar na exclusão social da pessoa julgada. Esse fenômeno tem se difundido nas redes sociais, apresentando dinâmicas que causam impactos significativos. Desde a ascensão das redes sociais até a intensificação da polarização política, as origens e implicações da cultura do cancelamento são multifacetadas, revelando um quadro alarmante de linchamentos virtuais, injustiças e prejuízos irreparáveis para aqueles que se tornam alvos desse fenômeno.
Por fim, cabe esclarecer que, sem o devido processo legal – garantindo o contraditório e a ampla defesa – ninguém pode ser considerado culpado. Não é possível utilizar a opinião pública para dar o veredito (salvo em tribunal do júri). Essa prática já causou sérios prejuízos, como o linchamento de pessoas, problemas mentais, suicídios, entre outros. Dessa maneira, o cancelamento compromete o debate aberto e prejudica a formação de consensos e compreensão mútua, em vez de promover uma razão dialógica e ação comunicativa eficaz.
Vilson Farias
Doutor em Direito Penal e Civil, e escritor
Charles Jacobsen
Acadêmico de Direito
Referências bibliográficas:
SAMPAIO, Rodrigo. Cuca é inocente? Estadão, 2024. Disponível em: https://www.estadao.com.br/esportes/futebol/cuca-e-inocente-especialistas-explicam-anulacao-de-condenacao-do-treinador-por-estupro-na-suica-.Acesso em: 05, jan e 2024.
Redação do GE, Caso Cuca, Globo Esporte, 2023. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2023/04/20/caso-cuca-entenda-a-condenacao-do-tecnico-por-estupro-na-suica.ghtml-.Acesso em: 05, jan e 2024.