O Ministério Público Federal, no dia 29 de setembro próximo passado, instaurou o Inquérito Civil nº 1.30.001.004372/2023-13 com a finalidade de investigar a participação do Banco do Brasil com a escravidão, oportunidade que determinou que esta prestigiosa instituição bancária teria 20 dias para pronunciar-se em torno do assunto. O jornalista Isaias Pascoal assim se manifestou “no inquérito aberto pelo MPF, no entanto há uma série de pontos que precisam ser esclarecidos, o mais importante deles é a visão de história que fundamenta a ação interposta, pois a questão sai do plano acadêmico e migra para uma ação política em um julgamento ético sem os cuidados necessários.“ Prossegue: “ A bem da verdade, nem no plano acadêmico propriamente dito, o documento que serviu de base à ação jurídica se ajusta convenientemente.”
As justificativas que fundamentam o procedimento investigatório movido pelo MPF são um exemplo de falta de sentido histórico, em que a perspectiva moral – do dever ser – sobrepõe à perspectiva do ser em sentido retroativo, pois quem viveu na primeira metade do século 19 tinha um horizonte, perspectivas e leis que comandavam a escravidão e o tráfico de escravos, embora sua proibição tenha ocorrido em 1831, a qual não teve efeitos práticos. Como bem ensina a invejável Lilia M. Schwarcz, inúmeras instituições brasileiras (senão todas) estavam inseridas na realidade da época, marcadas pelo escravismo. Apenas para exemplificar cita: Câmara, Senado, Monarquia, Igreja, Forças de Segurança em geral, Faculdades e, no caso em tela, o Banco do Brasil.
Como afirmava o inesquecível Joaquim Nabuco (na sua grande obra O Abolicionismo): “A escravidão torna o ar servil”, nada escapava a sua dinâmica.
Isaias Pascoal ainda escreve “é justo que as idéias e práticas de uma época sejam julgadas pelos sentimentos e perspectivas de outras?”. Prossegue: “O que a legislação da época prescrevia e proibia? Quais tipos de operações eram autorizadas e permitidas ao Banco do Brasil?”
Sem evidentemente responder a essas questões, as acusações ao Banco do Brasil serão a transposição horizontes presentes para um passado que não os obrigava. As idéias, sentimentos e expectativas de um tempo tem lenta maturação e só se estabelece no longo prazo. Nei Lopes fala que a luta pela instalação de uma sociedade justa socialmente, solidária, acolhedora dos direitos humanos, multicultural e multirracial, é um imperativo dos dias atuais, por isso é preciso deixar bem claro não existir espaço hoje para quaisquer discriminação e preconceito, e é inaceitável em uma sociedade por meio de suas instituições públicas.
Em conclusão diríamos, ainda, que a melhor forma de por em prática este conjunto de intenções é através de políticas públicas de prazo distante as quais são caracterizadas pelos cientistas políticos como politicas de Estado, capazes de ultrapassas o período pequeno dos governos que se sucedem ao longo do tempo.
O famoso escritor paranaense Laurentino Gomes, assim se manifesta “Hoje é abominável tudo o que contradiz os ideais de igualdade humana, civilidade, solidariedade e multiculturalismo. Mas não era assim até bem pouco tempo atrás. A escravidão estava disseminada pelo tecido social brasileiro e não despertava na sociedade sentimento de reprovação. A posse de escravos não era uma prerrogativa das pessoas abastadas. Quem podia comprava um escravo. A propriedade escravista estava protegida por lei. Só muito lentamente a escravidão passou a ser questionada, quando todos os seus suportes internos e externos, culturais, políticos e econômicos cederam.”. Como se obtém do estudo de suas grandes obras em torno do assunto.
Finalmente poderemos afirmar, tranquilamente, que o Banco do Brasil de hoje não é o de antigamente, mas o Inquérito Civil instaurado pelo Ministério Público Federal tranquilamente deverá responder tais questões relacionadas com a sua participação efetiva no período escravocrata, embora 20 dias seja um prazo exíguo, pois uma investigação séria para responder toda a participação do Banco do Brasil, naquele período triste da história do país, merece uma investigação séria alicerçada em historiadores de vulto.
Concordo com a tese de que o passado escravista brasileiro necessita ser encarado, entendido e confrontado em suas consequências sociais, mais que isto, deve ser realizado com procedimentos bem aprofundados, pois um tribunal da história, como escreve Isaias Pascoal, não é a melhor escolha por envolver procedimentos perigosos ou questionáveis, quando duas épocas distintas se confrontam, razão pela qual isso não significa que a sociedade e o Estado, atuais, não devam agir para superar a marca da escravidão, como bem salientou Joaquim Nabuco no livro “Minha formação”, que permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. A história lhe deu razão, o que também era sustentado por um dos maiores advogados da história, o negro Luís Gama.
REFERÊNCIAS
SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio. Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2018.
LOPES, Nei. Afro-Brasil reluzente: 100 personalidades notáveis do século XX. 1ª Ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
GOMES, Laurentino. Escravidão. Volume III. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2022.
PASCOAL, Isaias. O Banco do Brasil e escravidão. Estadão, 2023
Vilson Farias Doutor em Direito Penal e Civil, e Escritor
Leonardo Ávila, Advogado