Conhecemos Romano Guardini. Nascido em Verona/Itália, dia 17 de fevereiro de 1885 e falecido em Munique/Alemanha, dia 1º de outubro de 1968, foi um sacerdote, escritor e teólogo católico-romano. Iniciou sua docência em 1923, na Universidade de Berlim, onde permaneceu até 1939, quando teve seu curso suprimido por autoridades nazistas. Foi professor, mais tarde, na Universidade de Tübingen (1945-1948) e na Universidade de Munique (1948-1962). Sua influência na teologia católico-romana do século XX foi grande. Isto pode ser visto especialmente em dois campos: o diálogo entre teologia e literatura, como fez, por exemplo, nos seus estudos sobre Dante, e a liturgia. Romano Guardini declarou que “Em Deus Paciência e Bondade se identificam”.
Mas é uma outra declaração de Guardini, lida recentemente, que está ocupando minha mente, especialmente devido a pandemia que estamos vivendo. Pretendo, a seguir, fazer uma reflexão sobre essa sua declaração: “Na existência humana, geralmente estão separados o poder e o direito, a força e o valor, a realidade e a verdade, a existência e a dignidade. Isso explica a inconsistência e a insegurança dessa existência”.
De fato, a pandemia escancarou bem mais visivelmente a inconsistência e a insegurança da existência humana. A vida pessoal, familiar, social e ecológica exigiu, de repente, uma consistência e segurança que já não existiam mais. Veio o coronavírus e nossa vida experienciou que “onde” e “em que” estávamos muito agarrados, tinha muito de inconsistência e insegurança. “Valores” que considerávamos consistentes e seguros deixarem de existir.
Olhando a declaração de Guardini, escrita umas sete a oito décadas atrás, fica clara a separação do poder e o direito, da força e o valor, da realidade e a verdade, da existência e a dignidade. Separados estes binômios, existe inconsistência e insegurança; unidos estes biônimos, existe consistência e segurança. Isso porque fomos criados à “imagem e semelhança divina” que não separa “poder e direito, força e valor, realidade e verdade, existência e dignidade”.
O poder pelo poder, separado do direito, é abusivo. O poder pessoal, familiar, social e ecológico precisa estar unido ao direito. É o direito que proporciona a zêdeq bíblica, responsável de tornar o poder não abusivo, mas justo. A zêdeq coloca o poder no seu devido lugar, isto é, Deus com seu poder de Criador, a pessoa humana com seu poder de criatura, a sociedade com seu poder de irmandade e a ecologia com seu poder de respeito. Nesta pandemia, quão inconsistente e inseguro tornou-se o poder separado do direito!
A força pela força, separada do valor, é opressiva. A força própria precisa estar unida ao valor. É o valor que traz sempre presente a kavod bíblica, pois é ela que possibilita a força não ser opressora, mas somadora. A kavod torna a força própria em força também parceira: minha força própria é limitada pela força do outro. Dar valor à força do “eu” somada com a força do “tu”, para chegarmos ao valor da força do “nós”. O valor proporciona à força a comunhão: diviniza a força porque une e não diaboliza a força porque divide. Nesta pandemia, quão inconsistente e insegura tornou-se a força separada do valor!
A realidade pela realidade, separada da verdade, é escravizadora. A realidade precisa estar unida à verdade. É a verdade que proporciona a êmêt bíblica, que garante a força não tornar-se escravizadora, mas sinal da verdade. A êmêt coloca toda a realidade na sua base fundamental, eliminando toda a falsidade. A realidade é a verdade; o que é verdadeiro é real; o que é falso deixou de ser real. A verdade na realidade nos liberta; a falsidade na realidade nos escraviza. Nesta pandemia, quão inconsistente e insegura tornou-se a realidade separada da verdade!
A existência pela existência, separada da dignidade, é vazia. A existência precisa estar unida à dignidade. É a dignidade que realiza a hêsed bíblica, que evita uma existência vazia, mas plena de sentido. A hêsed contém toda a plenitude de Deus soprada no ser humano. Com a hêsed, esse sopro da vida divina (vida divina que é próprio amor em forma de gratuidade, bondade, misericórdia…), nós somos dignos e tudo resulta em dignidade ao nosso derredor. A dignidade dá sentido pleno à existência; sem dignidade, a existência é vazia, mesmo preenchendo-se ilusoriamente com sopros terrenos. Nesta pandemia, quão inconsistente e insegura tornou-se a existência separada da dignidade.
Com a pandemia da COVID19, que chance a humanidade está tendo para perceber, na sua existência, como andam separados o poder e o direito, a força e o valor, a realidade e a verdade, a existência e a dignidade. É hora de construirmos mais consistência e segurança para a nossa existência. É questão de felicidade!
Dom Jacinto Bergmann, arcebispo metropolitano da Igreja Católica de Pelotas.