Louise Azevedo Moscareli¹
O conceito de mal banal foi concebido por Hannah Arendt a partir do julgamento do tenente-coronel nazista Adolf Eichmann, responsável por organizar e providenciar a logística de transporte dos judeus tanto para os campos de trabalhos forçados como para os de extermínio. Ao analisar o caso, Arendt se deparou com um aspecto chocante: o mal não se esconde atrás de uma fronteira dicotômica que separa os indivíduos entre bons e maus. Em outras palavras, o mal não está somente na figura dos vilões, dos arquétipos de malignos e que, portanto, pratiquem atos maus. A maldade que advém do mal banal nem mesmo está num aspecto místico ou transcendental.
No caso Eichmann, Arendt se depara com a possibilidade do mal poder ser realizado por pessoas aparentemente normais, cumpridoras da lei e, nesse sentido, moralmente “decentes”, ou seja, ele pode ser praticado por pessoas comuns, sem um motivo razoável, de forma trivial. Para Arendt o “mal banal” não é uma categoria que ocorre porque o ser humano é ontologicamente mau, e o choque está no fato de que, ao não ser fruto de um distúrbio ou decorrência de um caráter identitário, de uma essência inata, por assim dizer, ou por uma entidade que àquele assole. Surge a questão de que o mal banal pode ser praticado por qualquer um, a qualquer momento. Porém, surgiu um dado relevante apontado por Arendt como a causa deste mal, mas que também pode ser o seu antídoto. Ela constatou uma relação direta e fundamental entre a ausência de pensamento e o mal, ou seja, a total incapacidade de questionar o que é certo, diante da obediência às ordens.
Ao descrever as características de Eichmann, Arendt aponta para alguém que estava ciente das suas ações, detinha inteligência, portanto estava em plena posse de suas faculdades mentais, mas que, no entanto, não conseguia perceber a realidade no sentido de questionar se aquilo que estava fazendo era correto e que, por essa mesma razão e, além disso, era incapaz de se colocar no lugar de outra pessoa, na medida em que estava adstrito apenas em seguir a lei.
Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal. (Arendt, 1999, p. 62)
Segundo Aristóteles, um dos princípios que regem o pensamento humano é o da não-contradição. Esse princípio diz que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ele explica que embora o ser humano seja capaz de conceber, ele é incapaz de acreditar em duas ideias opostas ao mesmo tempo. Na medida em que a coerência tem tamanha relevância para os homens, torna-se extremamente oneroso atuar no mundo de forma contrária àquilo em que se acredita, tendo em vista que isso fere o senso de identidade humana, levando o indivíduo a viver em conflito consigo mesmo. É por isso que, muitas vezes, ocorre a fuga da reflexão, quando não se pode, ou não se quer evitar a ação que pode entrar em conflito com o pensamento.
Além disso, uma característica fundamental do cérebro humano para preservar a saúde psicológica e a responsável por garantir a sobrevivência da espécie em ambientes hostis é a “plasticidade neural”. É ela quem faz com que a adaptação do homem ocorra e também faz com que, tudo aquilo que antes lhe chocava passe a ser assimilado com certa naturalidade, até o ponto de se tornar aceito e introduzido, sem oposição, no contexto da normalidade, como um fato corriqueiro e trivial, o que pode ser tanto positivo (como para um aluno de medicina que rejeita a ideia de sangue, e para alguém que precisa sobreviver ou trabalhar em meio a um ambiente de violência, por exemplo), como pode ser extremamente negativo, na medida em que pode levar ao comodismo, à tolerância excessiva e à conivência com absurdos ou mesmo com o mal banal.
Pelo pensamento, o indivíduo pode se questionar e buscar a razoabilidade, adequação e alinhamento entre suas ideias e crenças, e o que dele é esperado como comportamento. Por sua vez, a obediência cega e irrestrita leva o homem a se dessensibilizar, e a deixar de ponderar o que de fato é mais importante, abrindo brechas para inversões e para práticas progressivas de atos maus que passam a ser tolerados e justificados pela simples falta de reflexão, decorrente não da habilidade, mas da falta do exercício do pensar. Importa ressaltar que o dano não afeta a “capacidade” de pensar, mas propriamente o “ato” de refletir, na medida em que essa competência não é danificada, apenas ignorada pelo desestímulo, decorrente da falta de uso.
É preocupantemente perceber que as reflexões aqui propostas estão muito associadas com a forma como o Brasil tem enfrentado a pandemia provocada pelo Corona Vírus que, ainda em 2021, assola o mundo. Num país como o Brasil, tão rico natural e culturalmente, mas, mesmo antes da eclosão do covid-19, ainda devastado por todo tipo de exploração e por vicissitudes que ainda precisam ser minimizadas, suprimidas e solucionadas, tudo o que se precisava era, no mínimo, de cautela diante de um cenário tão adverso inesperado e novo, em que até hoje as certezas são poucas e os cuidados devem ser todos. Inobstante isso, não foi o que tivemos.
A desorientação passou a ser o vértice dos discursos que deveriam conduzir a nação. Se aqueles que têm estrutura emocional, acessibilidade à informação e recursos cognitivos para ponderar sobre os fatos que são noticiados e, a partir de então, determinar sua vida passaram a ficar confusos e desesperançados, pouco restou para quem sofreu um abalo, pouco tem acesso à informação e quando tem, ela lhe expõe a risco. O que esperar de quem não tem condições, por qualquer razão que seja, de fazer uma análise mais ponderada sobre o que está havendo, para estabelecer critérios sobre como deve agir?
Tais desinformações acompanhadas da falta de compromisso e do abandono do povo brasileiro a partir de perspectivas negacionistas da realidade, reducionistas do real impacto do vírus e deflacionárias de medidas e esforços que deveriam ser adotados para coibir o avanço do vírus de forma célere, séria e efetiva, cede espaço para se tratar com trivialidade a pandemia. Tudo isso leva à banalização do mal, por meio da falta de questionamento que encobre ações e omissões criminosas, praticadas com naturalidade, todos os dias pelas pessoas em geral, quando num julgamento comum tais condutas seriam tipificadas como dolo eventual2. Quantas pessoas ocultam a possibilidade de estar contaminadas para não se privar de trabalhar, sabendo que estiveram em contato com pessoas positivadas, negando para si o peso do que isso significa, diante do risco potencial de contaminar outra pessoa? Quantas pessoas apresentando sintomas e estando notificadas continuam transitando entre seus pares porque ainda não obtiveram a confirmação?
A falta de questionamento das ideias alheias e dos próprios pensamentos afeta a forma de se posicionar no mundo pela falta de exploração do pensamento e pela ausência de atitudes singulares. No entanto, esta ausência do pensar é interessante numa cultura de submissão, pois leva a uma falta de sensibilidade que precisa ser absorvida e assimilada como algo comum e trivial, a ponto de passar despercebida em amplitudes maiores.
Além dessa tradição que estimula a inibição do pensamento, advinda do discurso e das práticas das lideranças nacionais, bem como do estímulo social que vê a obediência como virtude, a falta de questionamento também é natural do cansaço. É mais fácil obedecer regras do que discutir. Também é comum da relação de poder, em que, muitas vezes, só resta ao bom senso a obediência ou a submissão.
Fugir do confronto das ideias é natural da falta de ter a quem recorrer, de ter apoio e respaldo. Está associado à impotência, à invisibilidade, ao sentimento de insignificância, na qual só resta agir como esperado, para não agravar a situação, ou para não chamar atenção, quando tudo o que se quer é se manter oculto, ou também quando é preciso ser aceito e, para tanto, é necessário sucumbir para fazer parte do grupo.
Não questionar é ainda natural do medo, do desespero. Todas essas frestas se tornam grandes umbrais que dão vazão à instalação da banalização do mal nas ações cotidianas de qualquer um, extraindo o exercício do pensar, como sucedeu com Eichmann. Ele era educado, inteligente e, embora pudesse parecer intrigante o fato de se declarar como não sendo um antissemita, foi um dos responsáveis pelo transporte dos prisioneiros judeus para os campos de concentração, apenas pelo fato de que era um cidadão cumpridor das leis. Embora soubesse que estava levando milhões de pessoas aos mais diversos tipos de torturas e à morte, ele compreendia que estava simplesmente cumprindo ordens, executando corretamente suas tarefas.
O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e
muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são
terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas
instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade
era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois
implicava que […] esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis
generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam
praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo
errado. (Arendt, 1999, p. 299)
Com a ideia do mal banal, Arendt advertiu o mundo sobre o fato de que a ausência de pensamento é capaz de extrair a humanidade do indivíduo, e de tornar as pessoas incapacitadas de exercer o sentimento de empatia pelo próximo.
Situações assim que desconectam o ser humano da sensibilidade pela ausência da reflexão, passam a ser o dia-a-dia da pandemia no Brasil diante de pessoas que são ignoradas, transformadas em números estatísticos de óbitos, que enfrentam a ausência de amores perdidos quando já há vacina disponível no mundo, mas não para todos. E mesmo diante dos que apresentam sequelas e dos que alegremente comemoram por terem se curado, quando, na verdade, não eram para terem sido contaminados. A frieza é a maldade também enfrentada pelas pessoas invisíveis e substituíveis que seguem expostas em serviços essenciais, que nunca param, e que não recebem nenhum tipo especial de proteção, já que não pertencem a uma entidade de classe que lhes proteja ou defenda seus direitos exigindo prioridade de vacina, ou que busque o fornecimento de máscara como EPI.
Atrocidades absurdas vivenciadas no Brasil e noticiadas na imprensa relatando a situação de médicos e enfermeiros esgotados, sem equipamentos e leitos disponíveis. Eles têm que fazer escolhas entre pacientes – quem vive/quem morre, compelidos a amarrá-los por falta de anestésicos quando entubados, ou tendo que assistir as mortes em decorrência da carência de suprimento de oxigênio. Pela completa falta de organização política e por descaso, o ser humano é compelido a criar uma barreira entre o agir e o pensar, sob pena de colapsar. Essa barreira é a denúncia que Arendt faz ao mundo, para que continuemos sendo humanos, o suficiente, para responder a situações chocantes com um pouco mais do que “E daí?”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES, Metafísica – São Paulo: Edições Loyolla, 2002.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém — Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia da Letras, 1999.
JOLIVET, Regis. Curso de Filosofia. Tradução de Eduardo Prado de Mendonça, Rio de Janeiro: Agir, 1959
¹ Formada em Direito e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Especialista em Gestão de Pessoas pela Universidade Católica de Pelotas – UCPel, Graduanda em Psicanálise pelo IOP e em Lic. em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. E-mail: [email protected]
² Dolo eventual é uma figura descrita no art. 18, inc. I do Código Penal Brasileiro que prevê a conduta daquele que age assumindo o risco de praticar a conduta criminosa que prevê que possa acontecer em decorrência de sua ação.
Junho/2021