Por Rubens Amador
Foi com aparente descontração que apanhou de uma gaveta uma enorme faca. Passou-lhe pela cabeça, num átimo, as dificuldades por que vinha enfrentando ultimamente. Instrumento cortante na mão, correu o polegar por seu fio de ponta a ponta. Olhou no espelho fronteiro e sentiu-se empalidecido. Na peça contigua, sua mulher, que tricotava, não imaginava o que ia na cabeça do marido. O homem levantou-se e ao mesmo tempo estacou, lendo uma manchete de jornal deixado sobre um móvel: “Esfaqueou a esposa e depois chorou no velório.” Sua cara que estava fechada, ficou mais sisuda ainda. Mas esboçou um sorriso vagamente tétrico e empurrou a porta com o pé. Empunhando o cabo de osso na mão enorme, caminhou lentamente como não se quisesse fazer ouvir, lâmina apontada para cima.
De novo estacou em sua lenta caminhada. Pareceu-lhe ouvir algo. Eram as crianças, buliçosas, que brincavam de “pegador” no pequeno pátio e nem viram o pai com aquela assustadora arma branca na mão. Ele acompanhou com os olhos o folguedo das crianças e esboçou um leve esgar na direção delas. Voltou à peça onde estava, trancando a porta. Apurou o ouvido. Cenho franzido: “Francisca!”, bradou alto, dirigindo-se a sua mulher na peça ao lado. “Estás aí?”. “Sim”, respondeu a mulher despreocupadamente, sem suspeitar do que se passava na cabeça de seu estressado marido. “Que horas são?”, perguntou ele à guisa de assunto. “Quinze para as quatro, não sei se está certo”. Ele se indignou com a resposta: “Como não sei se está certo!”, gritou com ironia. “Não amola, bem”, completou ela com enfado.
Num impulso quase felino, ele girou a maçaneta da porta que segurava já há alguns segundos, excitado. A pobre mulher de nada suspeitava. Afinal, não tinha porquê… Foi então que ele abriu a porta e com passos resolutos e ruidosos caminhou – faca afiadíssima na mão – até um centro de mesa, apanhou uma laranja de umbigo e, sentando-se num degrau, saboreou-a, enquanto ouvia no radinho de pilha “El día que me quieras”, com Júlio Iglesias.