A angústia como expressão da existência autêntica em Heidegger

Louise Azevedo Moscareli, advogada.

Por Louise Azevedo Moscareli, advogada.

Pretendemos estabelecer, neste ensaio, uma relação entre existência, angústia e autenticidade, de acordo com a filosofia de Heidegger. Para tanto, primeiramente, é preciso desenvolver alguns aspectos preliminares.

Segundo o Filósofo, o homem é o único ente capaz de questionar a respeito do significado do ser, da razão da sua existência e do porquê de haver algo no lugar do nada. Ao mesmo tempo, a existência do homem se dá concomitante com a sua introdução no mundo. Isso pelo fato de que o ser humano tem a sua existência misturada com o aquele, na medida em que desde a sua concepção e mesmo do início efetivo da sua existência, ele já está dentro do mundo. De fato, a partir do momento em que existência humana acontece, o homem se torna inseparável do contexto mundano, eis que este lhe antecede, já está posto. Em vista disso, é inconcebível a hipótese da existência humana dissociada do mundo. Por essa razão, o homem foi denominado por Heidegger de “Ser-aí” ou Dasein, termo que equivale a um ente que, a partir da existência, está aí, lançado ou jogado, no mundo.

Importa ressaltar que, para Heidegger, “mundo” significa um campo de acesso a todo sentido que reúne em si a natureza do qual o homem é inseparável, bem como os entes e eventos. Dessa forma, sempre que o Dasein diz “eu sou”, já deve estar subentendido que essa expressão significa “moro, detenho-me em… o mundo” (Heidegger, 2012, p.173).

Por outro lado, a circunstância do Dasein estar no mundo, envolve a questão da facticidade, ou seja, das coisas estarem postas diante da existência. A partir disso e do homem estar lançado num mundo que lhe antecede, faz com que ele seja condicionado por inúmeros aspectos que incidem sobre si, sejam eles de ordem social econômica, geográfica ou histórica. Nesse sentido, ele percebe o mundo como facticidade, tendo que se submeter às determinações impostas pelas circunstâncias e contingências da vida.

Contudo, na medida em que o homem procura algo além de si mesmo e de suas circunstâncias, se ele é capaz de buscar no devir a sua realização pessoal, isso significa que ele não se resume à facticidade apenas, ou seja, o homem também é transcendência e, nesse sentido, ele é livre. Dessa forma, ao apontar em direção dessa abertura para o mundo, ao lado da facticidade, Heidegger não apenas evidencia como também explora o campo da liberdade do indivíduo. Para o Filósofo, a liberdade está inscrita na própria natureza humana.

Entretanto, conceber uma natureza própria do homem não significa que ele esteja definido a partir de uma essência, eis que se houvesse uma natureza humana moldada e definida, não existiria a possibilidade de liberdade, para Heidegger. Ao contrário disso, segundo ele, a liberdade só existe porque o homem é esse ser inacabado, aberto à transcendência. A liberdade humana se relaciona, dessa forma, com o nada, eis que é justamente o fato do ser humano estar suspenso no nada que o torna livre para transcender e ser alguma coisa, especialmente, ser-si-mesmo.

Importa antecipar aqui o que veremos com mais detalhes oportunamente. Ao ser jogado no mundo, o homem está lançado para a morte, a qual é a única situação em que ele não tem liberdade de escolha.

Entretanto, segundo o Filósofo, o homem é um ente privilegiado porque é o único que pode ter acesso ao ser, eis que somente ele é capaz de pensar e buscar entender o mesmo, bem como de querer compreender qual o sentido da existência das coisas, ao perguntar por que há algo no lugar do nada. Aqui entra a reflexão humana ligada à questão da existência.

Decidir refletir ou não sobre essa questão é um ponto crucial da filosofia de Heidegger, tendo em vista que se o enfrentamento com a finitude e o nada leva à angustia, é justamente este conflito que pode fazer com que o homem saia da inautenticidade. No entanto, para que seja possível encarar tais questões, primeiramente, é preciso abordar cada um desses pontos e esclarecer aspectos relevantes relacionados a eles.

1) O primeiro ponto está ligado ao motivo que faz com que a angústia seja uma disposição ontológica e, portanto, associada à questão da existência.

Uma das formas de ser do Dasein é o “ser-de-angústia”, ou seja, a angústia é um dos “existenciais”. Trata-se de uma disposição ontológica, ou seja, de uma disposição própria do ser, por se tratar de algo a que o Dasein está apto e sujeito, o que não significa ser algo transitório, ocasional.

Isso significa que, a partir do instante em que o homem é jogado no mundo e detém a sua capacidade de pensar e de questionar sobre o significado das coisas, de perquirir o porquê de haver algo no lugar do nada e de enfrentar a questão do nada e da própria finitude, isso torna o homem suscetível à angústia.

Contudo, não se trata de conceber a angústia numa apreensão ôntica, como uma espécie de sentimento dos entes, pelo fato de que o sentimento é provocado por um objeto identificado que lhe dá causa, enquanto que na angústia, o objeto causador nunca é determinado, ou seja, não é possível apontar o elemento específico que desperta esse sentimento, eis que ele não se deixa apreender. Noutras palavras, como explica Heidegger: “o diante do quê da angústia não é nenhum ente do-interior- do-mundo. […] O diante-de-quê da angústia é completamente indeterminado” (Heidegger, 2012, p. 521).

2)O segundo aspecto a ser abordado refere-se ao fato de que a angústia é considerada por Heidegger como disposição fundamental, porque além do caráter de singularização da existência do homem, ela possibilita que ele saia da decadência e se aproprie do seu

Se a busca pelo sentido do ser leva o homem à angústia, esta também se apresenta, ao mesmo tempo, como a abertura originária do Dasein para a autenticidade, na medida em que ela coloca o homem diante do verdadeiro sentido do seu ser, da sua existência. Contudo, a angústia é percebida pelo Dasein por meio de um sentimento ambíguo eis que, por vezes, ela é estranha e, por vezes, é familiar.

Pelo fato de fazer parte da estrutura ontológica do homem, há um reconhecimento natural da angústia, por outro lado, ocorre também uma tentativa de repeli-la porque, na maior parte das vezes, o próprio Dasein está imerso na inautenticidade, fazendo com que ele, a princípio, resista a assumir aquilo que lhe é peculiar. Como um exercício se torna extenuante para aquele corpo sedentário que se nega a executar. Dessa forma, a angústia é vivenciada como estranha, por retirar o homem da impessoalidade do cotidiano e, por conseguinte, da decadência, permitindo que ele se aproprie do seu ser autêntico e singular.

Isso ocorre porque a angústia leva o homem a abandonar a mera ocupação, as tratativas superficiais ligadas ao ente e às questões públicas, para começar a se preocupar, de fato, com as questões da vida, próprias da existência e do significado do ser. É por isso que, segundo Heidegger, a angústia é a possibilidade de retirar o Dasein da decadência, do “entender-se a partir do ‘mundo’ e do público ser-do-interpretado” (Heidegger, 2012, p. 525).

Portanto, a angústia, como modo de ser do Dasein, se dá quando seu projeto existencial supera o imperativo do impessoal. Ela ocorre pelo simples fato de estar no mundo sendo autêntico, ou seja, “o porquê da angústia se angustiar é o ser-no-mundo ele mesmo” (Heidegger, 2012, p. 525). É a própria existência em si mesma que é carregada de angústia, na medida em que esta coloca o homem diante do sentido ontológico da sua existência, levando-o a se afastar das ocupações com as coisas ônticas para se preocupar sua existência.

Mas o que leva o homem a se preocupar?

3) Essa questão remete ao terceiro ponto a ser abordado, que trata das preocupações humanas apontadas por Heidegger com a finitude e o nada, e a sua relação com a angústia, na medida em que seriam essas as suas Se antes foi dito que não há um sentido ôntico na angústia, ou seja, algo determinado que se possa apontar como causa da angustia no homem, é justamente “o nada” o sentido ontológico da angústia. Segundo Heidegger, a angústia é um modo de ser fundamental do Dasein que “manifesta o nada”, isso porque, nela, há uma suspensão da própria existência humana, precisamente pelo fato de que a mesma deixa pendente o ente na sua totalidade (Heidegger,1979, p. 39):

Nisto consiste o fato de nós próprios – os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos entes. E por isso que, em última análise, não sou “eu” ou não é “você” que se sente estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar- se. A angústia nos corta a palavra.

Esta passagem não apenas evidencia uma das funções da angústia, que é retirar o sujeito do meio dos entes, extraindo-o da decadência, como também revela a questão da finitude do ser-para-a-morte.

A afirmação de que a angústia “nos corta a palavra” pelo estremecimento de não ter onde se apoiar, uma vez estando suspenso sobre o nada, evidencia a capacidade que a angústia tem de colocar o ser humano diante da reflexão da sua própria finitude. Esse é, portanto, o fato fundamental que constitui uma disposição fundamental do Dasein. A angústia desperta o indivíduo para a percepção da finitude, fazendo com que ele antecipe, em pensamento, a sua morte, a qual se configura como uma estrutura ontológica do ente humano, eis que todo ente humano, ao existir, já possui a condição de possibilidade de não poder-mais-ser-aí. Isso está relacionado com o que Heidegger (2012, p. 669) denominou de uma “constante incompletude” e que, com a morte, encontra o seu fim.

De fato, durante a sua existência, o homem já antecipa um “ainda-não” com relação à própria morte, o qual se faz presente desde que começa a existir. O homem é projeto inacabado que está sempre aberto ao futuro na medida em que não é constituído de uma natureza humana previamente determinada. É justamente este fato que o conduz à angústia, já que nela ele se depara com o nada e percebe a indeterminação e o vazio da sua existência. Entretanto, é justamente nesse vazio que o homem encontra a si mesmo. A necessidade de viver é uma necessidade de preencher esse vão, de transcender, a fim de achar um sentido para a sua vida capaz de ser projetado no futuro. Mas o que dificulta esse processo de transcendência e de procura pelo próprio ser?

4) O quarto ponto está ligado ao fato de que, embora a angústia seja uma disposição ontológica humana, o homem vive mais no ente do que no ser, optando por formas de viver impessoais, para fugir da preocupação e da angústia que sente ao enfrentar a finitude e o nada, sendo remetido à uma existência decadente e inautêntica.

O homem busca formas de viver para fugir da angústia, evitando o enfrentamento com a finitude e com o nada. Essas formas partem da busca por saciar a sua curiosidade de forma superficial, seja a partir do contentamento com o mero passar de olhos sobre as coisas, sem se propor a entrar, de fato, numa relação com o que é visto (Heidegger, 2012, p. 485), seja mediante a ambiguidade do falatório, em que a relação ocorre de forma subentendida e, ao mesmo tempo, obscura. Isso faz com que se restrinja à especulação dos fatos, implicando na sua própria decadência, a partir da impessoalidade de uma vida inautêntica e sem sendo crítico.

Ainda assim, há quem prefira levar a existência de modo impessoal para fugir da angústia. O problema é que essa forma de agir é uma mera distração sobre o vazio do nada, na tentativa de fugir enfrentamento do sobre a questão da finitude, a qual torna os homens inaptos a conferirem sentido e para imprimirem autenticidade à própria existência. A consequência é que, com isso, há um abandono do seu projeto de vida enquanto ser original que são, recaindo numa vida impessoal, decadente e vazia de sentido, razão pela qual estão sempre insatisfeitos.

Por fim, diante da imposição do impessoal que suprime a autenticidade, resta perquirir sobre como a angústia do Dasein poderá encontrar a totalidade do ser de sua existência.

5) Como a angústia leva o Dasein a uma existência singular, originária e autêntica, afastada da decadência?

O que o ser humano busca é a felicidade durante a vida. Como a vida não tem um sentido, ela é um eterno vazio. Isso implica em afirmar que o sentido da vida não está em algo pré-definido pelo mundo ou determinado por terceiros, como a história, a cultura, a ética, a sociedade ou qualquer outro “ismo”, que levou o homem a se afastar da busca pelo significado do ser. Ao contrário disso, o sentido da vida é algo que precisa ser criado e preenchido pelo homem, mediante as suas escolhas, o qual deve se encarregar de dar uma direção a ela, norteando-a.

A angústia atua nesse processo no sentido de instigar constantemente o homem a enfrentar o nada para perquirir o sentido o ser, acolher a finitude do mesmo, e fazer escolhas que dêem significado próprio e autêntico a sua vida. A existência autêntica surge quando o homem consegue dar, por si só, sentido à própria vida, preenchendo o nada do ser-em-si.

Bibliografia

CHAUÍ, M. Heidegger, vida e obra. In: Prefácio. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

HEIDEGGER, M. Que é Metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996

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MARÍAS, J. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MORENTE, M. G. Fundamentos da filosofia: lições preliminares. 8 edição. São Paulo: Mestre Jou, 1980.

Werle, M. A. (2003). A angústia, o nada e a morte em Heidegger. Revista Transformação vol.26 no.1

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