O debate sobre o PL Antiaborto: entre direitos constitucionais e princípios éticos

Vilson Farias. Foto: Divulgação

O Projeto de Lei nº 1.904/2024, que visa equiparar o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, tem gerado intensos debates no Brasil. Essa proposta, além de suscitar profundas reflexões sobre direitos reprodutivos, toca em questões fundamentais de justiça social, ética e constitucionalidade.

O parecer elaborado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) destaca que o PL utiliza uma linguagem que é descrita como punitiva, depreciativa e cruel. Argumenta-se que a criminalização do aborto tardio, especialmente nos casos de estupro, não apenas contraria princípios constitucionais como também aprofunda desigualdades sociais e raciais. Mulheres de baixa renda, com menor escolaridade e em situações vulneráveis seriam as mais afetadas por essa medida, agravando ainda mais suas condições de vida e saúde.

As declarações recentes do presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), José Hiran da Silva Gallo, adicionam um novo elemento controverso à discussão. Gallo criticou veementemente o uso da assistolia fetal como método para interrupção de gravidez em casos de estupro, descrevendo-o como cruel. Em vez disso, propôs a indução do parto como alternativa, argumentando que crianças nascidas prematuramente após 22 semanas de gestação têm potencial de sobrevivência com suporte médico adequado, sugerindo que essa abordagem seria mais ética e humanitária.

Contudo, críticos, incluindo entidades ligadas aos direitos das mulheres e especialistas em direito constitucional, contestam a posição do CFM. Eles destacam que a resolução desprotege meninas e adolescentes vítimas de estupro que se encontram além da 22ª semana de gestação. Argumentam que a medida impõe limitações indevidas ao acesso aos direitos assegurados por lei, incluindo o direito ao aborto legal em casos de estupro, e ressaltam que a Constituição brasileira não estabelece um conceito de vida desde a concepção, tornando a resolução do CFM questionável quanto à sua constitucionalidade e efeitos na proteção dos direitos humanos das mulheres.

No entanto, críticos apontam que a rigidez dessa legislação pode levar mulheres a recorrer a métodos inseguros de aborto, colocando suas vidas em risco. A restrição temporal ignoraria casos onde a descoberta tardia de complicações na gravidez poderia colocar em perigo a vida da gestante, além de submeter mulheres que foram vítimas de estupro a um sofrimento adicional e injusto.

Neste contexto, defensores do PL argumentam que a medida visa proteger a vida desde a concepção e garantir direitos ao nascituro. Para eles, a legislação atual é ambígua e necessita de um marco regulatório claro para evitar abusos e proteger a integridade da vida humana. A proposta também propõe aumentar a pena para quem realiza o procedimento de aborto tardio, destacando a gravidade do ato perante a lei.

Diante do exposto, é evidente que o PL Antiaborto tem desencadeado um debate profundo e necessário sobre os limites da intervenção estatal na esfera pessoal e sobre a proteção dos direitos das mulheres. A Constituição Federal, baluarte do Estado Democrático de Direito no Brasil, preconiza a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a não-discriminação como princípios fundamentais. Qualquer iniciativa legislativa deve ser avaliada à luz desses princípios, garantindo que não haja retrocessos nos direitos já conquistados.

Portanto, cabe à sociedade civil, aos legisladores e às instituições zelar pela preservação dos direitos constitucionais e pela construção de políticas públicas que promovam a saúde, a segurança e o bem-estar das mulheres em todas as suas particularidades. O debate sobre o PL Antiaborto deve ser conduzido com sensibilidade, respeitando a diversidade de opiniões e considerando os impactos reais que qualquer decisão pode ter na vida das pessoas.

 

Vilson Farias
Doutor em Direito Penal e Civil, e escritor 

Charles Jacobsen
Acadêmico de Direito

 

Referências bibliográficas:

FOLHA DE S.PAULO. Roberto Porto: Pena maior para vítima de estupro inclui bizarrice em legislação penal. 17 de junho de 2024. Disponível em: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1801955055495671-manifestantes-protestaram-em-sao-paulo-contra-pl-antiaborto-por-estupro. Acesso em: 19 jun. 2024.

AGÊNCIA BRASIL. Para CFM, assistolia é crueldade; entidades falam em retrocesso. 19 de junho de 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-06/para-cfm-assistolia-e-crueldade-entidades-falam-em-retrocesso. Acesso em: 19 jun. 2024.

O GLOBO. PL Antiaborto tem ‘linguagem punitiva, depreciativa e cruel’, diz parecer da OAB pela inconstitucionalidade do texto. 17 de junho de 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/06/pl-antiaborto-tem-linguagem-punitiva-depreciativa-e-cruel-diz-parecer-da-oab-pela-inconstitucionalidade-do-texto.ghtml. Acesso em: 19 jun. 2024.

AGÊNCIA BRASIL. Entidades criticam nova resolução do CFM sobre aborto em casos de estupro. 19 de junho de 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-06/entidades-criticam-nova-resolucao-do-cfm-sobre-aborto-em-casos-de-estupro. Acesso em: 19 jun. 2024.

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