Uma infância para o século XXI

Cristina Maria Rosa. Pedagoga, doutora em Educação, escritora e patronesse da 49ª Feira do Livro de Pelotas. (Foto: Divulgação/Arquivo pessoal)

Tive alunas, muitas. Uma de­las, escreveu-me. Não uma carta, que não somos mais disso. Per­guntas. O que é infância para ti?

Quando eu era criança, a in­fância era a que eu vivia. Não era um conceito. Era uma experiên­cia. E uma percepção. Das largue­zas e dos limites. Sim, eu perce­bia que havia outras: as infâncias dos irmãos, das primas, dos co­legas de escola. Havia crianças com infâncias mais ricas, mais li­vres. Outras, mais abandonadas, menos afetuosas, mais ignora­das. Na minha, íamos à escola, ao cinema, à missa; líamos o jor­nal, brincávamos na rua, viajáva­mos para a zona rural nos finais de semana, tomávamos banho de rio e comíamos as guloseimas da Nonna.

Na Pedagogia, aprendi que há infâncias. Na literatura, muitas crianças e seus universos infantis me foram apresentados: Emília, por Lobato (1920), Fernando, por Verissimo (1936), Lili, por Quin­tana (1948). E Arabela, Carolina e Maria, por Meireles. Outras tan­tas conheci e sobre seus modos de existir, escrevi. Tudo para radi­car suas presenças. E, assim, in­ventivamente, fabulei uma crian­ça e sua infância. Ao engenhar como deveria ser, desejei genera­lizar: direitos, deveres, possibili­dades. Assim, a criança inventada por mim é oriunda de uma tríade: é um exemplar da espécie, é her­deira legítima da cultura e não é boa nem má (Paul Bloom, 2014).

Desembaralhando…

Animais parcialmente inte­ligentes, nós, humanos não so­brevivemos sozinhos, precisa­mos de grupos para aprender: a comer, andar, falar. Por pos­suir um tipo estrito de inteligên­cia, nos apartamos da natureza e estamos apagando os passos. Sem emoção, elogio, aprovação, adoecemos. A fonte desse ar­gumento está na leitura que fiz de Sapiens: uma breve história da humanidade, de Yuval Hara­ri (2015).

A criança que idealizei é her­deira legítima da cultura. Her­deiros são os “nossos” com o me­lhor e o pior que temos. “Cultura” pode ser coloquialmente enten­dida como procedimentos e arte­fatos da e na história. A cultura escrita, que é do que trato aqui, é tudo o que produzimos que nos encanta e representa. Música, poesia e prosa. Fórmulas e equa­ções, tratados e acordos, receitas e diagnósticos. Manuais, mapas, livros sagrados e jornais. Memó­rias, bússolas e mais, se houver…

Observando os projetos de infâncias em curso, percebo que nenhum adulto de bom senso abre mão do melhor para os seus. E como sociedade, temos como dever ofertar. Na escola, todas as crianças devem ser conside­radas legítimas herdeiras. Assim, aprender a ler e escrever não pode ser prêmio. Nem exceção. Legar é disponibilizar livros, mé­todos, relações exemplares. Len­tes, como se dizia no século XIX. O princípio é: o saber produzido por todos, é de todos. É um prin­cípio de sobrevivência. Do saber, das instâncias que o generalizam, da sociedade e, em derradeira análise, da espécie. A criança que está nascendo no século XXI é um exemplar da espécie humana, é uma herdeira legítima da cultura, não é boa nem má e sua infância dura bem pouquinho…

Por Cristina Maria Rosa

Pedagoga, doutora em Educação, escritora e patronesse da 49ª Feira do Livro de Pelotas

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