Tive alunas, muitas. Uma delas, escreveu-me. Não uma carta, que não somos mais disso. Perguntas. O que é infância para ti?
Quando eu era criança, a infância era a que eu vivia. Não era um conceito. Era uma experiência. E uma percepção. Das larguezas e dos limites. Sim, eu percebia que havia outras: as infâncias dos irmãos, das primas, dos colegas de escola. Havia crianças com infâncias mais ricas, mais livres. Outras, mais abandonadas, menos afetuosas, mais ignoradas. Na minha, íamos à escola, ao cinema, à missa; líamos o jornal, brincávamos na rua, viajávamos para a zona rural nos finais de semana, tomávamos banho de rio e comíamos as guloseimas da Nonna.
Na Pedagogia, aprendi que há infâncias. Na literatura, muitas crianças e seus universos infantis me foram apresentados: Emília, por Lobato (1920), Fernando, por Verissimo (1936), Lili, por Quintana (1948). E Arabela, Carolina e Maria, por Meireles. Outras tantas conheci e sobre seus modos de existir, escrevi. Tudo para radicar suas presenças. E, assim, inventivamente, fabulei uma criança e sua infância. Ao engenhar como deveria ser, desejei generalizar: direitos, deveres, possibilidades. Assim, a criança inventada por mim é oriunda de uma tríade: é um exemplar da espécie, é herdeira legítima da cultura e não é boa nem má (Paul Bloom, 2014).
Desembaralhando…
Animais parcialmente inteligentes, nós, humanos não sobrevivemos sozinhos, precisamos de grupos para aprender: a comer, andar, falar. Por possuir um tipo estrito de inteligência, nos apartamos da natureza e estamos apagando os passos. Sem emoção, elogio, aprovação, adoecemos. A fonte desse argumento está na leitura que fiz de Sapiens: uma breve história da humanidade, de Yuval Harari (2015).
A criança que idealizei é herdeira legítima da cultura. Herdeiros são os “nossos” com o melhor e o pior que temos. “Cultura” pode ser coloquialmente entendida como procedimentos e artefatos da e na história. A cultura escrita, que é do que trato aqui, é tudo o que produzimos que nos encanta e representa. Música, poesia e prosa. Fórmulas e equações, tratados e acordos, receitas e diagnósticos. Manuais, mapas, livros sagrados e jornais. Memórias, bússolas e mais, se houver…
Observando os projetos de infâncias em curso, percebo que nenhum adulto de bom senso abre mão do melhor para os seus. E como sociedade, temos como dever ofertar. Na escola, todas as crianças devem ser consideradas legítimas herdeiras. Assim, aprender a ler e escrever não pode ser prêmio. Nem exceção. Legar é disponibilizar livros, métodos, relações exemplares. Lentes, como se dizia no século XIX. O princípio é: o saber produzido por todos, é de todos. É um princípio de sobrevivência. Do saber, das instâncias que o generalizam, da sociedade e, em derradeira análise, da espécie. A criança que está nascendo no século XXI é um exemplar da espécie humana, é uma herdeira legítima da cultura, não é boa nem má e sua infância dura bem pouquinho…
Por Cristina Maria Rosa
Pedagoga, doutora em Educação, escritora e patronesse da 49ª Feira do Livro de Pelotas
Excelente artigo de estreia da Professora Cristina Rosa. O JT está de parabéns!
Muito bom, Prof.(a) Cristina, parabéns a todos e todas.