
Há em meu inventário de textos literários imprescindíveis dois contos de José Saramago: “O lagarto” – incluído no livro “A Bagagem do Viajante” e publicado originalmente em 1973 – e “O conto da ilha desconhecida”, publicado no Brasil pela Cia das Letras (1998).
“O lagarto” é uma “história de fadas” repleta de ironia e poesia. Inicia assim: “De hoje não passa. Ando há muito tempo para contar uma história de fadas, mas isso de fadas foi chão que deu uva, já ninguém acredita, e por mais que venha a jurar e tresjurar, o mais certo é rirem-se de mim. Afinal de contas, será minha simples palavra contra a troça de um milhão de habitantes. Pois vá o barco à água, que o remo logo se arranjará”.
E é de um desejo por barco que trata “O conto da ilha desconhecida”. Nele, um homem afronta um rei demasiado interessado em “obséquios que lhe faziam a ele”. Ao comunicar por uma nesga da porta das petições o que desejava – “vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero” – logo depois, o homem deita-se ao comprido no limiar. “Entrar e sair, só por cima dele”. Saramago, nestas primeiras palavras, promete. Pela ausência de muitas das convenções marcadoras da escrita como vírgulas, travessões e pontos, os diálogos, explícitos ou metafóricos que intensamente ocorrem, exigiram comprometimento. Lido vagarosamente, minha primeira vez diante de Saramago foi intensa. Conto vigoroso, arrojado e profundo, requer estofo, sei. Logo, passou a ser o livro que mais presenteei. E é o que sempre leio quando desejo formar novo grupo de pessoas que venham a amar a literatura. Saramago, chão que dá uvas, nunca decepciona!
Em se tratando de “O lagarto”, tenho a dizer que chegou às livrarias em uma encadernação vigorosa: capa dura e, no miolo impresso em papel produzido a partir de fontes responsáveis, xilogravuras coloridas de página inteira especialmente elaboradas pelo artista popular brasileiro José Francisco Borges. Para ampliar os atributos desta obra, minibiografias do autor e do ilustrador foram inseridas nas páginas finais.
Lançado em 2016 pela Fundação José Saramago, “O Lagarto”, no Brasil, integra o Selo Companhia das Letrinhas (Editora Schwarcz) e aparenta ser um livro para crianças. Seria só para elas? Se outro pedacinho te falta como argumento para ler, escolhi este: “A história é de fadas. Não que elas apareçam (nem eu o afirmei), mas que história há de ser a deste lagarto que surgiu no chiado? Sim, apareceu um lagarto no chiado. Grande e verde, um sardão imponente, com uns olhos que pareciam de cristal negro, o corpo flexuoso coberto de escamas, rabo longo e ágil, as patas rápidas. Ficou parado no meio da rua, com a boca entreaberta, disparando a língua bífida, enquanto a pele branca e fina do pescoço latejava compassadamente”.
Neste ano que recém começou e muito promete, apresente inspiradores “contos de fadas” para familiares e amigos. Acredito que ficarão encantados, embora, como escreve Saramago, “isto de contos de fadas já não é nada o que era”.
Por Cristina Maria Rosa
Pedagoga