Obituário de um jornal

José Henrique Pires licenciado em Estudos Sociais pelo ICH-UFPel, especialista em Políticas Públicas pela Universidade de Salamanca, Espanha, jornalista e radialista. (Foto: Divulgação)

A primeira vez que visitei o Diário Popular foi num dia que considero mágico. A professora nos conduziu em fila e do Gonzaga fomos caminhando pela XV de Novembro, passamos a Padaria São João e, logo adiante, em frente à Rádio Tupanci, chegamos ao jornal. Alguém nos explicou como era feito aquele impresso enorme, dobrado ao meio e novamente dobrado. Tempos depois, soube que no Brasil e em Portugal, aquele era um legítimo modelo Standard, grande, com quase 55 cm.

Havia lá uma recepção, a redação, o laboratório dos fotógrafos e a gráfica, com suas máquinas linotipo barulhentas, com suas linhas de caracteres tipográficos, fundidos lá mesmo em chumbo (como os clichês fotográficos), fazendo uma sequência bem arrumada de carimbinhos, que subiam e voltavam numa máquina escura e barulhenta muito bem azeitada com graxa patente nas engrenagens. Lá no meio, botavam as folhas, que depois de apertadas resultaram no jornal que as pessoas compravam lá mesmo ou dos jornaleiros nas ruas, no Bimbo, ali ao lado do Foto Robles ou no seu Bandeira, ali adiante, na quadra da Taperinha.

Essa era a visão dos pequenos visitantes, que tinham a recomendação de olhar com os olhos, não tocar em nada e depois fazer uma redação sobre a visita. Voltei ao Diário Popular inúmeras vezes desde então.

No começo da década passada, estava trabalhando em Brasília e por razões profissionais integrava o comitê de acompanhamento legislativo da Associação Nacional dos Jornais, a ANJ. Numa reunião, alguém destacou o jornal brasileiro que, proporcionalmente, havia conquistado o maior número de assinaturas no trimestre anterior.

Pra minha surpresa, era o Diário Popular – de Pelotas, não o de São Paulo, informaram. Num período de queda de vendas motivadas pela internet crescente, o DP havia conquistado mais de 500 assinantes nos últimos três meses. Obviamente, contei sobre a reunião pra quem eu pude, inclusive para a direção do jornal.

Além de motivações assumidamente bairristas, havia sido acesa uma luz de esperança em meio a um cenário mundial adverso aos impressos.

Só nos Estados Unidos, com milhares de pequenas publicações semanais ou diárias espalhadas por todas as cidades de lá, entre 2004 e 2018, deixaram de circular 1.800 jornais, havendo até um site que publicava, todos os dias, um obituário de jornais. Era triste ler, diariamente, a pequena biografia contando a síntese da trajetória daquela publicação extinta, comunitária, de muitas e muitas décadas, que informava comunidades sobre tudo e que parara de circular. E esse derradeiro anúncio sempre era bem escrito, com a sobriedade e o respeito que os próprios jornais costumam dedicar ao noticiar – na seção de falecimentos – a partida de alguém da comunidade.

Aquela súbita melhora nas assinaturas do Diário Popular foi um bálsamo em meio a triste tendência do setor.

Hoje me deparo com a triste notícia do fim do ciclo do Diário Popular, que lutou como pode para manter-se vivo, mas sucumbiu.

Foram 133 anos, com renovação de parque gráfico, com edições de tabloide e digitais, gerando trabalho a tantas e tantas pessoas ao longo de sua existência.

Lá onde, também durante um tempo, ganhou seu pão de cada dia nosso escritor maior, João Simões Lopes Neto, lançando naquelas páginas seu conto imortal, o Trezentas Onças, no longínquo ano de 1912.

Nesse fechamento anunciado, uns perdem mais, outros perdem menos, mas, infelizmente, todos perdemos um pouco com esse ciclo que se encerra.

Mas, sigamos em frente. Pois, como bem disse Fernando Pessoa, tantas vezes citado no próprio DP, “navegar é preciso…”.

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