Um medo que hoje o mundo inteiro conhece, há pouco mais de um mês era completamente desconhecido na Europa, precisamente, na Itália. O país registrou o primeiro caso de coronavírus no dia 31 de janeiro, em Codogno, na região da Lombardia, mas subestimou a força do vírus.
Brasileiro, mas residente do país italiano há três anos, Antonioni Colvara Bernardi Leripio conta que tudo começou neste município, localizado na província de Lodi, entre Mantova e Milão, onde teve várias transmissões e acabou sendo bloqueada num primeiro momento. “Lá teve a quarentena local por duas semanas, só que os casos aumentaram dentro da cidade e depois foram se espalhando pela própria Lombardia, quando eles decidiram expandir o isolamento”, afirma.
“A grande questão durante essas duas semanas, a propaganda que tinham e o que falavam era que não ia ser nada demais, “vamos esperar a doença, passar por ela tranquilo”, porque a gente realmente não acreditava na força do vírus”, lembra.
Passado pouco mais de uma semana, as coisas começaram a piorar no país, com o número de casos confirmados aumentando consideravelmente. “Os médicos da linha de frente começaram a subsidiar os próprios governos em relação às informações técnicas de que o vírus não era tão simples quanto se pensava. De certa forma a gente percebe que não usou as informações chinesas, até pelo fato de não ter muita disseminação destas informações aqui”, recorda.
Leripio comenta que no país, que já foi o epicentro da doença no mundo, as medidas vinham sendo designadas dos hospitais para a Defesa Civil, que repassava aos governos. “Foram impostos multas e prisões para alguns casos, pois houve descumprimento. Hoje a polícia está nas ruas [fiscalizando]. Tu tens que imprimir um documento, que é uma autocertificação e sair com esta autocertificação dizendo a justificativa da tua saída. Só pode para trabalhos exclusivos, supermercado, farmácia, posto de combustível próximo de casa, por exemplo”, informa.
Segundo ele, na última terça-feira (31), foi informado por um médico, em boletim diário do governo italiano, que o país chegou no pico e estabilizou. Agora, a tendência é que comece a cair o número de casos confirmados e que logo ocorra com o número de mortes, além do número de curados aumentar.” As mortes nos assustam, são acima de 800 por dia e os números de curados ainda não deram a resposta que a gente esperava, já esperávamos que já tivéssemos até 4 mil curados por dia e não é o que acontece”, ressalta. Na segunda (30), foram registrados 1,6 mil curados, entretanto o número caiu para 1,1 mil na terça, mantendo o mesmo número também na quarta (1º) e na quinta (2) 1,4 mil.
“O isolamento tem dado certo, eles divulgam isso, se não fosse feito este isolamento, não sei como seria o caos vivido por aqui, que já está grande, em cidades grandes e que não teriam estrutura de aguentar uma pandemia”, finaliza.
Outra brasileira, que também reside na região da Lombardia, é a jornalista Julia Colvara. No país há quatro anos, ela fala que, num primeiro momento, os italianos acreditaram que o isolamento era uma oportunidade de folga. “Os alunos estavam sem aula e os pais acharam que eram férias, foram para montanhas esquiar, saiam para a rua para fazer diversas outras coisas. Depois disso, eles [o governo italiano] viram que iam ter que isolar todo o norte da Itália”, explica.
Ela diz que quando o decreto vazou, as pessoas começaram a viajar para o sul do país para ficar com suas famílias. “Milhares de pessoas foram para a estação central de Milão para pegar trem naquela noite. Hoje posso dizer que a maioria dessas pessoas contaminou os pais, levou o vírus para o sul e depois de dois dias, o governo resolveu fechar toda a Itália, porque, simplesmente, não tinha como conter só em uma parte e não conter em outra”, frisa.
“Há 10 dias, eles fecharam as fábricas que não eram essenciais e proibiram atividades físicas ao ar livre. Hoje só está funcionando supermercado, farmácia, fábricas alimentícias, logística, correio parcialmente, bancos apenas por agendamento. Não sabemos como vai ficar depois, se vamos ter outro pico ou não, mas é ideia é de, realmente, continuar fechada, para que esse pico diminua e se abra gradualmente”, compartilha Julia.
A reportagem entrou em contato com o médico italiano Diego Ripamonti, dos Hospitais Reunidos (Ospedali Riuniti), de Bergamo, na Itália. Luciáh Tavares entrou em contato com ele, traduzindo o relato do profissional. A revisão do texto traduzido foi realizada pelo ítalo-brasileiro Sergio Romanelli, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Ele explica que o coronavírus chegou na Itália quando se pensava que, no máximo, ficaria relegado à China e ao oriente, como aconteceu com a Sars – uma outra infecção do coronavírus – ou a Mers, que é uma outra infecção do coronavírus que não saiu, de fato, da península arábica.
Ripamonti conta que em Bergamo a explosão da epidemia se deu em torno de 22 de fevereiro, de forma violenta e rápida. Ele acredita que o número de mortos é maior que o divulgado oficialmente, pois grande parte das pessoas, principalmente idosos, permaneceram em casa, pois a Saúde não suportava todos.
“O isolamento é a única arma que temos a disposição para conter a difusão, o contágio, de maneira que nos hospitais se possa reverter o número de internações para um número que a estrutura hospitalar possa aguentar. É claro que é cansativo, e é também prejudicial do ponto de vista econômico, mas é a única possibilidade para não morrer”, acrescenta.
Fazendo um panorama sobre o Brasil, Diego Ripamonti garante: “Vocês estão em vantagem em relação a nós, já que isso já aconteceu em um outro lugar e então vocês podem aprender com os erros e tirar proveito, se preparando da melhor maneira possível. Mas vocês devem fazer isso logo! Eu desejo que vocês saibam afrontar esta batalha melhor do que nós conseguimos”.
Quem veio de lá para cá
“Eu até agora não acredito na rapidez que as coisas aconteceram na Itália”. Assim a atriz pelotense Luciáh começa seu relato à reportagem. Ela desembarcou no país no dia 22 de dezembro para ficar dois meses, como faz todos os anos. “Vou todo ano para trabalhar com teatro e aulas de italiano a pessoas com dificuldade de aprendizado”, explica.
“Vi uma notícia no início de janeiro, quando a China alertou sobre o vírus, mas a mídia falava mesmo das festas de Natal, que vão até 6 e 18 de janeiro dependendo da região. Depois falavam dos saldos da estação, das filas nas lojas de grife e do Festival de San Remo (que acontece no início de fevereiro). Só fui ver algo maior na mídia no final de janeiro. Li uma matéria no início de fevereiro e foi o que me fez ficar atenta, mas não muito, pois ninguém falava ainda”, explana.
Quando a situação começou a ficar mais conhecida, Luciáh se viu diante da xenofobia. “Enquanto estava dentro do trem, pensei sobre preconceito, me senti mal ao instintivamente mudar de lugar dentro do trem para não estar próximo a duas garotas chinesas. Enquanto eu me deslocava pelo vagão, percebi que ali dentro, qualquer um poderia ter o coronavírus, inclusive eu”, lembra.
Ela conta que ficou alguns dias em Cabo Verde, sem notícias da Itália e do Brasil. Ao desembarcar, ela notou que o país europeu estava em todos os noticiários por conta da doença. Em um primeiro momento, achou um exagero e uma atitude sensacionalista da mídia. “Só fui compreender de fato a gravidade quando chegaram notícias de pessoas de Bergamo (cidade próxima de Milão). Era como se eu estivesse sã e salva no Brasil, e aqui o vírus não fosse chegar nunca. Quando os doentes e mortos passaram a ser pessoas próximas percebi a cegueira diante do fato. Tenho a sensação que se passaram muitos anos desde 21 de fevereiro de 2020 até hoje, falar com os amigos italianos não tem sido fácil”, desabafa.
O médico veterinário Gino Lemos também se viu na mesma situação que Luciáh. Ele desembarcou na Itália no último dia 6, para uma viagem a lazer em Roma. O plano inicial era ficar 10 dias, que viraram cinco com o decreto de quarentena nacional, no último dia 11.
“Um motorista me comentou que nunca tinha visto uma cidade tão vazia e desde o aeroporto e outros lugares, como estação de trem, a recomendação era usar álcool gel e de não usar máscara, pois é irrelevante o uso para quem não tem sintoma. Nos restaurantes, bares e cafés que frequentei, as mesas já estavam separadas e a polícia, às vezes, passava para ver se não havia aglomeração. Em lugares públicos, como Coliseu e Panteão, eles frisavam bastante a fila com um metro de distância entre cada pessoa, não podia ficar muito próximo e toda hora tinha policiais e Exército orientando”, ressalta.
“Quando a quarentena estourou era um dia de noite. Na manhã seguinte comecei a me informar, pesquisar sobre a quarentena, e entendi que não era um fechamento total do país, mas sim que as pessoas tinham até 18h para estarem na rua e depois não podiam ficar circulando. Comecei a ficar com bastante medo e também preocupado com minha família aqui sabendo que eu estava lá. Agilizei no mesmo dia para voltar para o Brasil”, conta Lemos.
Após pouco mais de dois meses do primeiro caso, o último boletim divulgado pelo governo italiano afirma que 13.155 pessoas já morreram e mais de 110,5 mil estão contaminadas.