Pinheirense contraria a lógica, renasce e se reconstrói após 23 anos usando drogas

Domício Mendes, de 52 anos, tem consciência de que venceu a morte e que isso foi possível diante da vontade divina. (Foto: Sara França)

É bem possível que uma boa parte da população de Pinheiro Machado tenha presenciado a história que será contada nesta reportagem, principalmente aqueles que têm atualmente cerca de 40 anos. O JTR resume as mais de duas décadas da vida do pinheirense Domício Mendes no mundo das drogas, cujo relatos são surpreendentes.

“Foram 23 anos usando, sem falhar sequer um dia, álcool, maconha, cocaína, crack e merla”, afirmou Mendes. “Sem dinheiro para comprar mais pedra e para comer, diante de tanta fome busquei, encontrei no lixo e comi, uma coxinha de frango”, completou.

“Tive casas, carros, motos e um salário que hoje gira em torno de R$ 19 mil. Cheirei e fumei tudo”, finalizou o pinheirense.

Questionamentos para quem leu até aqui: qual o destino para quem faz isso? Cemitério? Então, a seguir, algo que, diante da pouca e, às vezes a quase nenhuma compreensão humana, é “impossível”!

Aos 52 anos, Mendes recebeu o JTR em sua comunidade situada a três quilômetros da BR-293, no acesso ao município de Morro Redondo, onde, até o início de janeiro, abrigava em áreas separadas 37 homens e 12 mulheres, todos, como costuma chamar, seus irmãos. Mas sobre esse trabalho social e que se estende também para Pelotas, vamos, com certeza destacar, mas isso será em outro momento, afinal, o lar só existe devido à trajetória de vida de seu idealizador e gestor. “Quando conheci uma vida de cara limpa, me apaixonei por mim mesmo e, hoje, ao receber quem viaja até mil quilômetros para buscar socorro aqui, estou convicto: não, isso não tem preço, não existe dinheiro que pague!”, garantiu.

O primeiro impacto vem quando Mendes revela que as drogas passaram a integrar sua rotina de vida aos 11 anos, quando ingeriu bebida alcoólica pela primeira vez, porta de entrada que o levou a, literalmente, colocar tudo fora. “Atuei como supervisor de montagem e sou qualificado para quatro processos em solda, o que permitiu trabalhar na Petrobras e em quatro refinarias de petróleo e duas plataformas para a extração deste. Eu ganhava tão bem que atualmente meu salário poderia chegar aos R$ 25 mil. Cheguei a ter três casas: uma na praia, em Tramandaí, a primeira, em Pinheiro Machado, e outra em Sapucaia (do Sul), motos e carros”, recordou o ex-adicto.

Mendes contou ainda que esteve muito bem financeiramente cinco vezes, mesmo usando todo tipo de entorpecente. “Fumei e cheirei tudo. Em uma das oportunidades, trabalhava, e fazia isso drogado, na Esfera Montagem Industrial, em Porto Alegre. Por achar que ia morrer se continuasse ali, sensação causada pelas drogas, pedi demissão e, mesmo assim, recebi uma ótima rescisão que gastei toda fumando e cheirando”, confessou Mendes, que, a seguir, revelou um dos episódios que sintetizam sua falência como ser humano.

“Quando o dinheiro terminou e eu não tinha nada nem mesmo pra comer, com fome, decidi revirar uma lixeira na rua Anchieta, em Porto Alegre, e nela achei uma coxinha de frango. A vergonha foi imensa e antes de comê-la, olhei para os lados para ter certeza de que ninguém estava me olhando”.

O soldador dá sequência ao relato contundente relembrando uma cena que ainda está em sua mente, ocorrida em sua terra natal no dia que, mesmo já sendo o que pode ser chamado de um morto vivo, também causou vergonha na filha mais velha, à época com aproximadamente 17 anos. “Eu estava imundo, indo comprar crack. Ao atravessar a praça Angelino Goulart, a vi, mas ela correu e se escondeu. Aquilo me doeu tanto, mas ela tinha toda razão e hoje entendo o que fez e sentiu”.

Quando indagado se essa foi a cena que resume sua degradação, Mendes afirmou: “não. Foi a que aconteceu em 19 de agosto de 2010, na rua Barão do Rio Branco, a uma quadra da Tiradentes. Eu estava deitado num colchão, com uma camiseta toda rasgada, sem nada para comer, imundo, sem ninguém da família querendo se aproximar e com um câncer de garganta causado pelo uso do crack na lata e com cinza de cigarro, ali eu já me encontrava no fundo do poço”, admitiu.

Diante dos registros vivos na memória, o responsável pela comunidade Maria de Nazaré continua o retorno em anos anteriores a sua salvação, fazendo questão de relatar outros episódios causados pelo vício nas drogas e que o manteve por muito tempo como um zumbi, vagando por ruas de diferentes cidades e Estados. Mendes relembrou do dia em que conheceu o crack, o que o fez emitir uma frase mórbida e que indicava seu certo fim doloroso. “Quando eu rumava para o Mato Grosso, soube que em uma cidade tinha muita maconha para vender, mas desci do avião em Araucária e, ali, comprei e usei crack pela primeira vez. Foi quando conheci e senti o ‘beijo da morte’ e minha destruição foi rápida, foi grave!”.

O divisor de águas na vida de Mendes foi o diagnóstico de câncer causado pelo uso da substância letal. Ele afirmou ao JTR que chegou a fumar até 15 gramas diariamente – o que o levou pesar apenas 46 quilos e, consequente, à internação. Antes da grave doença física, o pinheirense disse que chegou a dar um de seus veículos para um traficante e, com isso, garantir não menos que 8 gramas de crack para consumo diário.

Mendes garante que o início do processo de desintoxicação o permite comparar ao que a mitologia chama de Fênix, para que ele renascesse das cinzas. “A vez em que minha irmã foi me buscar no hospital em Sapucaia, necessitou parar o carro quatro vezes para que eu saísse do veículo e respirasse. Além do câncer, também estava com quatro úlceras no estômago, o que me fez ficar 14 dias sem comer e 12 dias sem ir ao banheiro evacuar”, relembrou.

“Foi Deus, eu só aguentei porque ele quis!”, reconheceu Mendes, ressaltando trazer consigo os três pilares que permitem pessoas com sua história sobreviverem e deixarem as drogas no passado: espiritualidade, trabalho e disciplina. Ele garante que aprendeu ser esse o caminho para a empatia, boa vontade, amor ao próximo e uma vida organizada, sendo esses sentimentos o alicerce para, até hoje, não ter tido sequer uma recaída desde que deu o primeiro dos 12 passos imprescindíveis para que alguém se torne um, então, ex-usuário.

“Depois de 23 anos me drogando diariamente, causando minha falência física, espiritual e financeira, consegui, decidi que era a hora de parar e, pela primeira vez, conheci uma vida de cara limpa. Gostei tanto dela que me apaixonei por mim mesmo”, afirmou Mendes. Ele amplia: “a literatura do programa nos faz entender ser essencial aceitar e admitir nossa total derrota. Isso abre as portas para a recuperação. Não dou brechas para uma recaída, mas reconheço que isso aumentou minha luta para não me drogar outra vez. Colabora também sair semanalmente às ruas de Pelotas, ajudando pessoas que fazem o que eu já fiz e que estão como por anos me encontrei”.

Ao final da entrevista, o pinheirense falou de felicidade, de coisas que lhe dão alegria, inclusive, à alma. Entre estas, a filha que um dia ele envergonhou. “Hoje tenho total compreensão do que ela sentiu. Mas sobre a satisfação que tenho comigo, no Natal passado chegaram tantas mensagens pelo WhatsApp e que foram enviadas de todo o Rio Grande do Sul, mas ainda da Bahia, Paraná, Santa Catarina, enfim… de vários cantos do Brasil e até de outros países, como o Uruguai por exemplo, sendo remetidas por pessoas que passaram pela Nazaré e, hoje, reconstruíram suas vidas. E, destas, algumas que já viajaram até mil quilômetros para se socorrer aqui. Isso não tem preço e não existe dinheiro que possa pagar o que me causa imensa alegria ao coração!”.

Ao concluir, Mendes admite mais uma vez: “quando eu tinha tudo que o mundo me dava, era uma pessoa extremamente infeliz. Hoje, tendo novamente uma família, meu filho e todas as minhas filhas de volta e meus netos, afirmo: agora sim, tenho convicção de que não sou somente um homem, mas um pai e um avô totalmente feliz!”.

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