Em acidentes ou catástrofes climáticas de grandes proporções, boa parte da atenção da sociedade e da imprensa, em particular, dirige-se a três processos conduzidos pelo governo do Estado: as operações de resgate de pessoas vivas ou mortas, a formação da lista de desaparecidos e a identificação de vítimas fatais.
A comoção que se instaura de maneira coletiva e a angústia de familiares e amigos acabam gerando cobranças por informações rápidas. No entanto, na contramão dessa expectativa por celeridade, há uma série de cuidados, protocolos e obrigações que precisa ser cumprida para evitar erros que poderiam gerar transtornos ou aumentar sofrimentos.
Além disso, em algumas situações, como as operações empreendidas após as fortes chuvas que caíram entre 2 e 6 de setembro no Vale do Taquari, impõe-se a necessidade de estabelecer procedimentos específicos, em razão da magnitude e peculiaridade do fenômeno, dos estragos e das mortes.
Neste 4 de outubro, completa-se um mês do ápice da tragédia, quando os excepcionais volumes de chuvas agigantaram o rio Taquari, que acabou transbordando para muito além de suas margens. As águas avançaram com força, arrastando o que havia pela frente, e invadiram casas e empresas, provocando 50 mortes. Ainda há oito desaparecidos – as buscas por suas localizações prosseguem.
Durante esses 30 dias, servidores das Forças de Segurança trabalharam intensamente nas operações de resgate das vítimas e na localização de corpos. Desde o princípio das operações, duas instituições do Estado têm papel estratégico na condução dos processos: a Polícia Civil (PC), na elaboração da lista de desaparecidos e na apuração dos fatos, e o Instituto-Geral de Perícias (IGP), responsável pela identificação das vítimas localizadas sem vida.
A PC montou uma força-tarefa para localização dos desaparecidos que, no início, foi coordenada pelo delegado de Polícia Silvio Kist Huppes e, atualmente, é liderada pela delegada Shana Luft Hartz. Conforme Huppes, quando um corpo é encontrado, a PC comparece ao local para averiguar os fatos e, na sequência, efetua o registro de ocorrência em uma delegacia. A corporação apura as circunstâncias do ocorrido, conversando com familiares e conhecidos do desaparecido.
Os corpos são levados para o Posto Médico-Legal da região, até o limite operacional, ou seja, a capacidade de conseguirem dar conta da demanda. Caso o número de vítimas supere a capacidade diária, é utilizado o Protocolo de DVI (Disaster Victim Identification, ou identificação de vítimas de desastres, em tradução livre do inglês) da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol, em inglês, International Criminal Police Organization), conforme o diretor-geral adjunto do IGP, Maiquel Luís Santos. Com base nesse documento, o IGP, para contornar a sobrecarga ocasionada por um eventual grande número de mortos a serem necropsiados, prevê a utilização de contêineres frigoríficos e a ajuda de outros postos e até do Departamento Médico-Legal de Porto Alegre.
Identificação
A necropsia consiste no exame médico-legal que determina as lesões encontradas e, se possível, a causa da morte. Além dela, são realizados exames visando à identificação da vítima e a coleta de materiais para exames complementares (DNA, toxicológico e alcoolemia).
Em casos de desastre em massa, Santos explica que o IGP segue o mesmo protocolo da Interpol para identificação de um corpo. Há três maneiras de isso ocorrer: reconhecimento pela arcada dentária, pelas digitais e por teste de DNA. Conforme o protocolo, basta um desses métodos primários de identificação para se confirmar a identidade de uma pessoa. O documento sugere que, quando acontecer um desastre em massa, deve ser evitado o uso do reconhecimento pessoal familiar como alternativa única.
Um exame de DNA leva, em condições normais, cerca de 20 dias para ficar pronto. Com a força-tarefa montada para atendimento do Vale do Taquari, o prazo pode diminuir para dois dias, a contar da recepção do material. O tempo necessário para o resultado, no entanto, depende muito da condição de degradação do corpo, do tipo de vestígio utilizado (sangue, músculo, osso ou dente) e, por consequência, da técnica aplicada para a extração do material genético.
Depois da identificação do corpo, os familiares são avisados e é emitida a Declaração de Óbito, que permite o registro em cartório (Certidão de Óbito). Somente com a posse desse documento o corpo pode ser liberado.
A identificação é um processo oficial, então o IGP encaminha um laudo pericial por meio do Sistema de Polícia Judiciária (SPJ), da Polícia Civil. Para a situação específica decorrente das enchentes no Vale do Taquari, o IGP ainda contata para a PC a fim de informar quando ocorre uma identificação.
O nome das vítimas fatais não é divulgado por restrição da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Os únicos que recebem a identificação são os familiares e o responsável da PC pela lista de desaparecidos, para que o nome deixe de constar dela, caso a vítima constasse nessa relação.
A tabela que a Defesa Civil divulgou diariamente até 26 de setembro apresentava, entre outros dados relativos às consequências da enxurrada que atingiu o Vale do Taquari, o número de mortos e a cidade onde o corpo foi localizado, conforme informações prestadas para o IGP pelo Corpo de Bombeiros Militar (CBMRS) ou pela PC. O material passou a ser disponibilizado apenas quando houver nova informação relevante, entre elas a localização de um corpo.
Lista de desaparecidos
A lista de desaparecidos provoca apreensão porque cada nome pode se converter em uma vítima fatal. A relação de pessoas com paradeiro desconhecido após os trágicos eventos climáticos no início de setembro chegou ao total de 116, lembra Huppes.
Se de fato não tivessem sobrevivido, isso tornaria a tragédia ainda mais catastrófica, mas como foram percebidas inconsistências nos dados, policiais civis averiguaram a situação. Eles cruzaram dados de todos os órgãos e centralizaram em uma única lista, de modo a obter uma informação mais fidedigna.
Entre 9 e 10 de setembro, 40 agentes trabalharam exclusivamente na busca das pessoas que constavam nas listagens oficiais dos órgãos estaduais e municipais. Acabaram localizando 96 pessoas, seis não tinham dados suficientes para serem consideradas desaparecidas, seis estavam mortas e por fim, após as diligências, oito foram oficialmente declaradas desaparecidas.
O primeiro passo para incorporar um nome à lista é comunicar o desaparecimento a um órgão estatal, preferencialmente por meio de um registro na Delegacia de Polícia mais próxima do ocorrido. A partir daí, a PC inicia uma série de diligências, com pesquisas nos sistemas informatizados e diligências de campo para localização da pessoa e de seus familiares. Após a realização de todas as buscas e entrevistas com as últimas pessoas que estiveram com a vítima, ela é declarada desaparecida.
Esse trabalho preliminar se mostrou de grande importância porque, depois das chuvaradas e das enchentes, muita gente ficou sem comunicação, o que dificultou contatos e acabou inflando as listas extraoficiais de desaparecidos que havia nos municípios.
Sempre que acontece o acréscimo de um novo nome na lista de desaparecidos, os familiares são avisados previamente à divulgação. Esse procedimento foi adotado antes de circular a primeira relação, que continha os oito desaparecidos confirmados pela PC.
Um mês depois, o ritmo das atividades atenuou porque diminuiu a gravidade própria dos dias seguintes à tragédia. Porém, as equipes seguem em operação, conjugando o rigor dos protocolos com a necessidade de dar respostas à sociedade.