Um vestido bordô e uma brochura

José Henrique Pires licenciado em Estudos Sociais pelo ICH-UFPel, especialista em Políticas Públicas pela Universidade de Salamanca, Espanha, jornalista e radialista. (Foto: Divulgação)

Naqueles dias eu trabalhava numa rádio e a morte dele – infarto fulminante – jovem e emergente liderança comunitária foi notícia.

Antes do almoço, passei no velório, organizado de forma solene na Câmara de Vereadores.

Coroas em profusão, mastros embandeirados, muitas pessoas presentes e – recebendo os pêsames – a viúva, grande amor e relativamente recente companheira do finado. Uma vistosa jovem que havia feito sucesso num cabaré local, tirada de lá por ele, que lhe montou residência e garantiu que não lhe faltaria nada dentro de casa.

“Eu vou tirar você desse lugar, eu vou levar você pra ficar comigo. E não me interessa o que os outros vão pensar”, já havia cantado premonitoriamente o inigualável Odair José.

A jovem senhora estava aturdida pela perda e também com aquele ambiente com tantas flores, cerimonial do serviço funerário, políticos de todos os partidos, que lhes estendiam as mãos e davam abraços com votos de pesar.

Pessoa simples, de pouco estudo, despreparada para aquela circunstância triste e solene, que prenunciava um futuro inesperado e incerto.

Formavam um casal feliz, até a véspera.

Ela trajava sua melhor roupa, um vestido vermelho escuro, quase grená, dotado de um pronunciado decote que lhe valorizava o busto e generosas fendas laterais que a valorizariam numa pista de danças.

Mas o baile ali era outro, estava tremendamente emocionada, segurando como podia as lágrimas e os soluços. Afinal, não sabia se o ambiente vetusto permitia tais manifestações mais intensas.

No outro dia, quando cheguei para trabalhar na rádio, havia vários recados de pessoas aflitas, querendo falar comigo sobre as exéquias da véspera.

Um religioso, importante sacerdote de cultos afro-brasileiros, foi dos primeiros a conversar e explicou: no momento em que seria fechado o caixão, um agente funerário, respeitosamente, recolheu o livro de condolências e assinaturas e, com certa solenidade e reverência, o entregou nas mãos da jovem viúva.

Ela, que queria falar – não sabia o que dizer – talvez estimulada por aquela brochura que tinha em mãos, levou o caderno até o caixão e o depositou sobre o falecido e falou: “Vai, meu amor. E leva contigo todos os teus amigos!”.

Dito isso, fecharam o esquife.

Religiosos, amigos e supersticiosos que me ligaram, atribuíram o gesto não a uma atitude inocente. Estavam convictos tratar-se de ato deliberado de feitiçaria. Afinal, ela disse bem alto: “vai e leva junto teus amigos”. Para eles, isso foi praga rogada.

Queriam providências. Queriam a exumação do féretro para resgatar o livrinho, para tirá-lo de lá.

Por isso, estavam mobilizando todas as rádios, já haviam passado na Delegacia de Polícia, no Instituto Médico-Legal, na Prefeitura e na Câmara de Vereadores.

Parece que não conseguiram o intento, que só teria êxito se fosse judicializado.

Já faz muitos anos, muitos dos que estavam lá até já faleceram. Não sei se efetivamente assinaram o nome no livrinho. Como eu não me lembrei de assinar, não vi os nomes que lá estavam escritos.

E como já disse antes, “no creo en brujas”!

*José Henrique Medeiros Pires é Licenciado em Estudos Sociais pelo ICH UFPel, Especialista em Políticas Públicas pela Universidade de Salamanca, Espanha e jornalista e radialista

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