Quando cheguei a Pelotas, em meados dos anos 1970, logo me dei conta que ali não havia Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) para atender as urgências. Como eu tinha vivência de longa data trabalhando como socorrista, resolvi ser eu mesmo o Samu alternativo. Assim é que montei um estojo de emergência com as principais medicações de uso em urgência cardiovascular. Tinha, então, no porta malas do meu carro essa caixa com seringas, álcool, garrotes e toda sorte de fármacos injetáveis – isso, além do eletrocardiógrafo.
Um belo dia fui convocado por um colega clínico, professor catedrático, que não atendia mais urgência. Fomos juntos ver uma paciente sua com intensa falta de ar. Chegados ao seu domicílio, um sobrado, do térreo se escutava a respiração estertorosa da paciente, que se encontrava no andar de cima. Era uma senhora com cabelos brancos em desalinho, face pálida, fronte úmida, lábios arroxeados, com a boca entreaberta. Tinha o rosto crispado pelo esforço respiratório. Não conseguia falar e arqueava os ombros na tentativa de buscar ar. Produzia um som gorgolejante alto e grave. Sua filha segurava tensamente a sua mão na tentativa de lhe oferecer algum conforto.
Em uum exame rápido veio o diagnóstico: o tão temido edema agudo de pulmão, situação de gravidade extrema em que os pulmões se enchem de líquido por insuficiência cardíaca, produzindo sufocação intensa que culmina com a morte se não tratada rapidamente. Comecei, de imediato, a preparação de tratamento padrão para a época: seringa grande com aminofilina, cedilanide e furosemida, pegar veia e injetar lentamente. A seguir, garroteamento venoso rotativo de três membros e, na reserva, se fosse necessário, a morfina.
Em vinte minutos o milagre se operava, anunciado pela voz da paciente: “muito obrigada doutor, agora já consigo respirar”. Só então, olhando com mais cuidado, percebi, através de seus olhos opacos e esbranquiçados, que era cega. Soube então que era diabética e, há longos anos sofria, com as limitações impostas pela doença. Não saía de casa e passava acamada a maior parte do tempo.
Recolhi meus utensílios de trabalho e, junto com o colega catedrático, nos dirigimos para o carro. No caminho perguntei-lhe se havíamos feito o certo, salvando uma pessoa cuja qualidade de vida nos parecia tão precária. “Não nos cabe escolher quem vai viver, só nos cabe ajudar os persistentes a sobreviver. Cada um se adapta e se apega a cada réstia de vida que se apresenta, e isto é então a vida que vale ser vivida”.
Por Ciro Mombach
Médico