
(Ao Marasco, nosso merecido patrono).
Que dias pesados aqueles. Acabara de morrer Yuri Gagarin, cosmonauta soviético, o primeiro homem a chegar ao espaço sideral.
A Terra continuava azul, quando seu jato de treinamento absurdamente caiu. A União Soviética e o mundo inteiro choravam.
No Rio de Janeiro, milhares protestavam contra a ditadura, pedras eram respondidas com tiros e eis que surge um mártir, o menino Edson Luís, cuja imagem inerte sobre a mesa de refeições do Restaurante Calabouço, com seu peito desnudo cravejado de balas da Polícia Militar (PM), teve o efeito daquelas fotos que valem mais do que mil palavras. No caso, um milhão.
No dia de sua missa de réquiem, foram tantos os protestos que o número oficial de 560 presos pela polícia pareceu insignificante ante a magnitude do caldeirão em que se transformou a antiga capital da República.
Naquele cenário, o Marechal Artur da Costa e Silva, presidente da República Federativa, surge no Rio Grande do Sul.
Gaúcho de Taquari, ele visitou Bagé, cidade natal de sua esposa Yolanda, que lá não foi. Optou por esperar em Pelotas, para onde rumou após embarcar no helicóptero posicionado na cidade de Pinheiro Machado.
Aterrissou às 11 da manhã e uma multidão o aguardava no aeroporto. De lá foi inspecionar as obras da Cohabpel e recordar seus dias de coronel em Pelotas, quando comandou o 9° Regimento Interno (RI), entre 1946 e 1948.
Foi farta a programação. Teve muita coisa.
No Theatro Guarany, completamente lotado, o público aplaudiu tremendamente a inédita cerimônia casada: a Câmara de Vereadores lhe entregava o título de Cidadão Pelotense, ao mesmo tempo em que a novíssima Universidade Federal de Pelotas (UFPel) destinava ao marechal presidente o título de Doutor Honoris Causa.
A imprensa nacional, como é praxe em viagens presidenciais, acompanhou os eventos e produziu matérias, distribuiu radiofotos e contou detalhes para todo o país.
“O Brasil encontra-se muito seguro de sua estrutura”. Este foi um dos motes do discurso pronunciado na tribuna instalada no Guarany. A ponte Quarai-Artigas também foi citada pelo presidente, quando este elencou sucessos de sua gestão aos ouvintes atentos.
Teve muito mais coisa, mas culminou com um requintadíssimo jantar-baile no Clube Comercial, joia rara da arquitetura gaúcha, cujo salão de festas poderia estar sobre o grande Canal em Veneza, de onde veio sua inspiração e muitas aberturas com cristais de Murano, além daquele espetacular mosaico do saguão, devidamente incrustado pelo arquiteto Izella.
Não havia internet, mas já existiam espertinhos, “influencers” dos anos 60, que criavam modas e vendiam coisas.
Naquela época, a indústria fonográfica brasileira havia lançado uma pérola: um long play com “As favoritas do Presidente”, onde a playlist de Costa e Silva estava nos lados A e B do disco de vinil, e que animavam Sua Excelência, fosse em algum quartel Brasil afora ou em algum palácio Brasília adentro.
A orquestra, contratada pelo Clube Comercial, baseou-se naquele disco, fazendo dele o roteiro perfeito para embalar as danças daquela noite de luz, em meio a um país às escuras sombras.
Como contou Zuenir Ventura, em “1968, o ano que não terminou”, era preciso abrir o baile e o marechal, não resistindo aos apelos, convida dona Yolanda e o inaugura, dançando Carolina, de Chico Buarque de Holanda, que era sucesso desde 1967 e estava – incrivelmente – dentre as favoritas do presidente.
Teve a tal placa.
No saguão, não tão alta, que não pudesse ser lida por todos, e não tão baixa, que fosse possível perceber tratar-se apenas de um molde (na pressa com que mandaram fazer, não dava tempo de executar a fundição do metal).
Fizeram o modelo em madeira, deram uma tonalidade bronzeada e descerraram um monumento de pau, que a cidade acaba de reencontrar após os ladrões a terem arrancado da parede e comercializado por exatamente cinco reais.
A placa furtada, já devolvida, de um Clube Comercial que hoje é escombro do que já foi, nos fez lembrar que, naquela mesma data, praticamente no mesmo horário do início das danças, morria a tiros, em Memphis (EUA), o jovem reverendo Martin Luther King. Foram dias e também noites pesadas aquelas.
Por aqui, bailes, passeatas, prisões, expurgos e em poucos dias a abertura de uma gigantesca cratera institucional batizada de AI 5, que escancarou as garras da ditadura para quem ainda duvidava que ela as tivesse.
Por isso, aquela placa é tão interessantemente simbólica.
Como escreveria Tom Jobim, tempos depois: “é pau, é pedra, é o fim do caminho, um resto de toco, é um pouco sozinho”. Como o Clube.
*José Henrique Medeiros Pires é Licenciado em Estudos Sociais pelo ICH UFPel, Especialista em Políticas Públicas pela Universidade de Salamanca, Espanha e jornalista e radialista