Milonga de algodão

José Henrique Pires licenciado em Estudos Sociais pelo ICH-UFPel, especialista em Políticas Públicas pela Universidade de Salamanca, Espanha, jornalista e radialista. (Foto: Divulgação)

Naquela imensa fila que desembocava na porta da bilheteria do Teatro Sete de Abril, entre tantas e tantas pessoas, chamou minha atenção uma senhorinha de trajes muito humildes, pequenininha, com fartos cabelos bem branquinhos.

Lembro o sorriso dela quando pedi licença, passei e acenei com a cabeça para todos e fui abrir a porta para dar início aos trabalhos.

Apesar de não ser o bilheteiro, julguei que sendo o diretor do teatro, era ali que eu deveria estar naquele dia em que, pela primeira vez, Pelotas integrava a Campanha de Combate à Fome e a Miséria do sociólogo Betinho.

De forma bem organizada, seriam trocados ingressos por alimentos não perecíveis. Exceto sal.

Valia quaisquer viveres na troca, menos cloreto de sódio, que era coisa extremamente barata. Isso foi muito divulgado, essa informação cir­culava junto com as propagandas do evento.

A longa fila, formada horas antes, tinha razão de ser: a quantidade de lugares era limitada pelo número de vagas nas cadeiras da plateia e dos camarotes, naquele evento badalado da campanha, que mobilizava o Brasil e incluía Pelotas.

Jovem, Renato Borghetti, com sua gaita ponto e seu chapéu de aba larga cobrindo a testa, naquele momento já fazia imenso sucesso, graças ao seu talento notável e ao seu primeiro disco, até hoje mítico.

Aberto o guichê, as pessoas foram entregando pacotes com açúcar, farinha, arroz, feijão, e recebendo em troca seu ingresso para o show tão aguardado.

Eis que chega aquela velha senhorinha.

Lembro bem, não devia ter mais de um metro e meio de altura, com sua saia abaixo do joelho, um casaquinho de tricô também na cor cinza, numa tonalidade um pouco mais clara, apoiada numa pequena bengalinha. No rosto, um inesquecível sorriso e um olhar vívido, sur­preendentemente juvenil.

Havia chegado a vez dela!

Calmamente, se aproxima do balcão da bilheteria e deposita seu pacote com alguma dificuldade.

Dentro dele, duas barras de meio quilo cada de sabão grosso.

A menina que representava a Coordenação da Campanha ficou sem palavras e me olhou, sem precisar dizer que pedia socorro.

A restrição específica era ao sal.

Por outro lado, sabão que era muitas vezes entregue nos ranchos, hoje sacolas econômicas, não era alimento.

Eu resolvo, disse.

Recebi o pacote com sabão, entreguei o ingresso de plateia e ela, radian­te, saiu apoiada em sua bengalinha em direção à rua Marechal Floriano.

Como era de se esperar, a noite do show do Borghetti foi um tremendo sucesso. Esperávamos arrecadar cerca de meia tonelada de alimentos e conseguimos o dobro, pois muitas pessoas doaram pacotes e sacolas com quantidade de gêneros muito acima do mínimo exigido pela campanha.

Lembro-me de ver aquela cabecinha branca, qual um algodão, balan­çando pra lá e pra cá, acompanhando os acordes da gaita ponto. No seu lugar na plateia, que não ganhou de presente, que conquistou ao trocar sua doação pelo bilhete de ingresso.

Quando o caminhão recolheu a tonelada de donativos para a campanha de combate à fome e a miséria, já havíamos separado os lotes, que foram sendo acomodados na carroceria, devidamente identificados: feijão, 150kg; arroz, 300 kg; farinha de trigo, 50 kg…

Lá em cima, ia um pacotinho, onde se lia: Sabão Marmorizado Lang, 1 kg.

*José Henrique Medeiros Pires é Licenciado em Estudos Sociais pelo ICH UFPel, Especialista em Políticas Públicas pela Universidade de Salamanca, Espanha e jornalista e radialista

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