Há 73 anos, Pelotas ganhava um presente que mudaria seu rosto para sempre

Avenida Beira-Mar no dia da inauguração do Balneário Santo Antônio em 31/01/1952. (Foto: arquivo pessoal)

Há 73 anos, Pelotas recebeu um presente que transformaria sua identidade urbana e social: a praia do Laranjal, devidamente urbanizada, entregue à sua população. Um sonho tão aguardado que, quando finalmente se tornou realidade, mudou para sempre a relação da cidade com a Lagoa dos Patos.

Desde os tempos mais remotos, os pelotenses sabiam que havia um paraíso às margens da Lagoa dos Patos. Suas águas tranquilas e o cenário exuberante eram um convite irresistível para quem buscava descanso e lazer. No entanto, esse paraíso estava localizado dentro de propriedades privadas, sendo necessário obter autorização para acessá-lo. Felizmente, os proprietários das quatro estâncias da família Assumpção quase nunca se negavam a conceder essas licenças. Assim, durante cada verão, essas estâncias ficavam apinhadas de veranistas, que montavam seus acampamentos rudimentares sob as frondosas figueiras e desfrutavam da natureza em sua forma mais pura.

Na segunda metade da década de 1940, um dos proprietários dessas terras decidiu que era hora de transformar essa exclusividade em um benefício coletivo. O advogado, político e professor universitário Antônio Augusto de Assumpção Júnior, proprietário da Estância do Laranjal, antiga sede da sesmaria de Thomaz Luiz Osório, acreditava que seria injusto que apenas uma família tivesse acesso irrestrito a uma obra-prima da natureza como o Laranjal. Com o apoio de sua esposa, Zilda Tavares de Assumpção, e estimulado pelos veranistas que frequentavam sua estância, afora a pressão popular, ele ousou dar um passo além: transformar parte de sua propriedade rural em uma vila residencial de veraneio.

Era uma empreitada audaciosa e de risco. Na época, sequer existia uma ponte sobre o Arroio Pelotas, e o acesso ao Laranjal era difícil. Ainda assim, Assumpção Júnior acreditava no potencial da região e sabia que, com planejamento e visão, poderia criar um balneário lacustre que rivalizasse com a praia marítima do Cassino. Para isso, precisava de aliados.

Foi então que, por uma dessas casualidades da vida, conheceu, em um dos verões na estância de seu irmão Alfredo Assumpção, o engenheiro agrônomo Adolfo Bender. Apaixonado pelo Laranjal e compartilhando dos mesmos ideais, Bender tornou-se o parceiro essencial para levar o projeto adiante. Além da expertise técnica, sua ligação familiar também foi um fator de aproximação: ele era concunhado de Alfredo Assumpção, proprietário da Estância Mimosa (Carmelo).

Mas a missão exigia ainda mais. Para estruturar e comercializar o loteamento, Bender sugeriu que Assumpção Júnior contratasse Juan Carlos Di Lucca, um uruguaio com ampla experiência em loteamentos naquele país, publicidade e corretagem de imóveis. Di Lucca aceitou o desafio e trouxe consigo uma equipe de corretores do Uruguai, que ajudariam a promover e vender os terrenos.

A visão do grupo era clara: transformar o Laranjal em um balneário moderno, com ruas planejadas, infraestrutura completa e espaços destinados ao lazer. Mas a execução desse plano exigia investimentos pesados e enfrentava desafios técnicos complexos, como a drenagem dos banhados, arruamento, colocação de bueiros e a criação de uma rede de abastecimento de água e energia.

A transformação começa
O primeiro passo concreto foi a abertura da estrada que ligaria o corredor principal à praia que se deu em 1947. Essa via foi batizada de avenida José Maria da Fontoura, em homenagem ao tio-bisavô de Antônio Assumpção Júnior, antigo proprietário dessas terras, como forma de preservar a sua memória. A urbanização avançou com a abertura da avenida Beira-Mar, que terminava no cruzamento com a rua nº 23, atual rua Porto Alegre, bem como da Segunda Avenida, atual avenida Rio Grande do Sul, que terminava no cruzamento com a rua nº 6, atual rua Santo Ângelo. Em 1949, após a aprovação da planta da primeira fase do loteamento, algumas tímidas vendas foram realizadas pelo corretor Francisco Agrifóglio. No entanto, foi apenas em 1950, com a chegada de Di Lucca e sua equipe de corretores, que as vendas realmente tomaram impulso. O sucesso se deveu ao massivo apelo publicitário, uma estratégia inovadora para a época, que atraiu um grande número de interessados e consolidou a viabilidade comercial do balneário.

Um dos aspectos que diferenciou o início da urbanização do Laranjal foi a preocupação de Antônio Assumpção Júnior com a preservação e a valorização da paisagem natural. Por sugestão do próprio Dr. Antônio, conforme narrado por Bender, figueiras e coqueiros-jerivás foram transplantados para ornamentar a orla da avenida Beira-Mar, conferindo à paisagem um charme tropical que permanece até os dias atuais. Além disso, no traçado das ruas, onde havia figueiras nativas, determinou-se que elas não deveriam ser derrubadas, mas sim que o traçado das vias fosse desviado para preservá-las. Essa decisão garantiu que a vegetação original continuasse a integrar a paisagem do balneário, proporcionando sombra e um caráter único à neófita cidade balneária do Laranjal.

A inauguração: um marco para Pelotas
O grande dia chegou: em 31 de janeiro de 1952, a Vila Residencial Balneária Santo Antônio foi oficialmente inaugurada. O evento foi marcado por uma procissão de 300 fiéis, que carregaram a imagem de Santo Antônio desde a Estância do Laranjal até o terreno destinado à construção da igreja do padroeiro. A missa campal, celebrada por Dom Antônio Zattera, marcou a concretização desse grande projeto e selou a integração definitiva do Laranjal a Pelotas.

Naquela mesma noite, a “Taberna da Lagoa” (atual Padaria Ki-Colosso) abriu suas portas para um baile, organizado pelos antigos veranistas da Estância do Laranjal em homenagem à família Tavares de Assumpção, como reconhecimento por sua bela iniciativa. Descrito pelo extinto jornal Diário Popular como “concorridíssimo”, o evento reuniu os novos proprietários dos terrenos do balneário pelotense e teve a animação do conjunto musical “Cancioneiros do Ritmo”. O brilho da festa refletia a grandiosidade do momento: o Laranjal, que um dia foi apenas uma extensão selvagem, agora era uma vila residencial planejada, pronto para receber uma nova gama de veranistas e moradores.

A continuidade do legado
Ainda no ano de 1952, por motivos de saúde, Antônio Assumpção Júnior tomou uma difícil decisão: vender o empreendimento ao seu amigo pessoal e empresário Adolfo Fetter. Este empreendedor, reconhecido por sua capacidade administrativa e visão estratégica, aprimorou e deu continuidade ao legado pioneiro do Laranjal, garantindo que o balneário se consolidasse como um dos mais importantes da região.

A ousadia de Assumpção Júnior não apenas mudou a geografia da cidade, mas também inspirou outros empreendimentos. O sucesso de sua iniciativa impulsionou o surgimento dos balneários vizinhos, como Valverde e Prazeres, ampliando ainda mais o acesso dos pelotenses à Lagoa dos Patos.

Após o falecimento de Assumpção Júnior, ocorrido em agosto de 1954, a grandiosidade de sua obra foi reconhecida de forma solene. Por iniciativa da Sociedade Praia do Laranjal, empresa da família Fetter que sucedeu no empreendimento, e do Laranjal Praia Clube, foi feita uma justa homenagem: a avenida Beira-Mar foi rebatizada para avenida Dr. Antônio Augusto de Assumpção Júnior.

A cerimônia, realizada no dia 18 de dezembro de 1954 e amplamente noticiada pelo Diário Popular em sua edição de 24 de dezembro daquele ano, foi conduzida pelo empresário Adolfo Fetter e contou com a presença de autoridades civis, militares e eclesiásticas. Entre os discursos que marcaram o evento, o do professor Rafael Alves Caldellas, representante do Laranjal Praia Clube, foi especialmente emocionante:

“Aqui, ouvindo o marulhar das águas da Lagoa que ele amou, pisando as areias da praia que eram o seu encanto, o que pretendemos frisar é que, ao prestarmos a homenagem que hoje se concretiza, na inauguração desta placa que, no bronze vai perpetuar seu nome, ligado a esta avenida, estamos homenageando, com justiça, aquele que foi a mola mestra, que transformou banhados e matos no florescente balneário que hoje é esta realidade tangível que contemplamos”.

Já o sobrinho do homenageado, Dr. Lindolfo Alberto Wrege, expressou o reconhecimento da família: “esta eloquente exteriorização do reconhecimento à iniciativa do homenageado, implantando este regalo aos veranistas pelotenses, sensibiliza sobremodo a todos aqueles que, no seu convívio, sentiram sempre o anseio incontido que o dominava, de ver, um dia, concretizado o seu ideal. O Balneário era, realmente, uma ideia fixa, uma preocupação constante; era quase uma obsessão do Dr. Antônio Augusto de Assumpção Júnior. Felizmente, ele teve a ventura de ver plenamente vitoriosa sua grande aspiração, excedendo mesmo à expectativa mais otimista”.

O reconhecimento oficial: o nascimento de um bairro
O impacto da inauguração do Balneário Santo Antônio foi tão significativo que a Câmara de Vereadores de Pelotas, por meio da lei ordinária nº 6.989, de 28 de outubro de 2021, reconheceu oficialmente a data de 31 de janeiro de 1952 como o aniversário de nascimento do bairro do Laranjal. Esse reconhecimento consolidou a importância histórica do empreendimento e reafirmou a transformação do Laranjal de um espaço privado e rústico em um bairro planejado, acessível e integrado à cidade.

Um legado que resiste ao tempo
A transformação do Laranjal não foi apenas uma conquista urbanística; foi uma revolução na forma como Pelotas se relaciona com sua geografia e seus espaços de lazer. O que antes era um cenário selvagem e restrito a poucos, hoje se tornou um dos bairros mais icônicos e valorizados da cidade, integrando natureza, história e modernidade.

O espírito inovador de Assumpção Júnior permanece vivo a cada verão, quando famílias se reúnem à beira da Lagoa dos Patos, a cada caminhada pelo calçadão da avenida que leva seu nome e em cada lembrança preservada pelas gerações que fizeram do Laranjal parte de suas vidas.

Setenta e três anos depois, a história continua. O Laranjal segue evoluindo, crescendo e reafirmando seu papel como um dos maiores patrimônios afetivos e urbanísticos de Pelotas. Seu passado de coragem, sua trajetória de progresso e sua beleza incontestável garantem que este presente, dado à cidade há mais de sete décadas, continue sendo celebrado como um símbolo de transformação e pertencimento.

Por Antônio Augusto de Assumpção Mazzini

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