Interpretações

Interromper a sequência de acontecimentos é temerário, naturalmente. Po­rém, às vezes, essa sequência foge do nosso controle. Boa parte dos desentendi­mentos tem origem na interrupção ou má interpretação das sequências.

Imagine: eu escrevo um e-mail, desabafando para um amigo. Ele me responde com outro longo e-mail, que não chega na minha caixa de entrada. Eu fico pen­sando no motivo dele não ter respondido, ele lá desconfiado por eu não comentar sua resposta. Relações estremecidas, por via de consequência.

Encontro com uma amiga e combino um almoço para o dia seguinte no res­taurante preferido dela. Um imprevisto acontece e desligo o celular, esquecendo, completamente, de ligar para desmarcar. Ela fica à deriva me esperando sem en­tender coisa alguma. Difícil de reparar o dano na relação trincada.

Pequenos e grandes estragos processados nas relações de convívio, que per­mitem dar asas à imaginação e às interpretações das mais variadas.

Muitas vezes, interpretamos um olhar de perdão como repreensão, um gesto de paciência como omissão, um sorriso sereno como rejeição e por aí afora. In­terpretamos mal a gestos silenciosos e a palavras proferidas porque tentamos adivinhar e presumir. E o pior é que não escapamos de ser mal interpretados da mesma forma.

Interpretar gestos exige habilidade de percepção tátil das emoções humanas. Coisa de poucos e raros. É como se fôssemos capazes de esmiuçar a alma do outro com mãos de veludo, cuidadosamente, pois essa leitura não é feita de palavras e, sim, a leitura do livro que cada um traz em si mesmo.

O livro que escrevemos no nosso interior e que mantemos guardado longe do alcance de olhares alheios. Apesar disso, vez ou outra, o folheamos descuidados, deixando sem querer que nos peguem de surpresa numa fração de momento. E pronto! Lá se vão nossas emoções a se exibirem descaradas em olhares indisfar­çáveis ou em gestos vulneráveis. Os outros nos leem. E, perigosamente, podem interpretar como bem quiserem os segredos das nossas mais íntimas verdades.

Por certo, ainda temos gravados na retina da alma muitas atitudes e olhares que nem o tempo conseguiu traduzir.

Nas relações humanas, é preciso praticar o exercício da compreensão, da maleabilidade, da ginástica de entender os silêncios, as omissões, as invasões, os esquecimentos, as acomodações.

Talvez, não se entenda com facilidade a linguagem implícita daquilo que não foi dito, nem feito. E que, escapando ao nosso alcance, para todos os efeitos, é mal interpretado.

Relações de causa e efeito, de ir e vir, de medo e coragem, nesse intrincado es­paço da convivência de pessoas na interpretação errônea dos gestos e das palavras.

Mas o que vale, afinal, é a sobrevivência da troca que praticamos no constante e fantástico ato de conviver em meio a silêncios e ruídos, tentando bem interpretá-los.

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