A criança que carrego no coração

Pensei em escrever sobre as crianças. Ideias mil povoaram meus pensamentos. Lem­brei da minha infância, de episódios repletos de ricos detalhes. Memórias que vêm à tona num repente e que se acomodam devagarinho nas poltronas de uma sala antiga.

Onde terá ficado aquela boneca que me fez companhia? Em que lugar deixei a casinha de madeira com mobílias em miniatura? E o palhaço colorido? No baú de brinquedos guardei tantas histórias e personagens que fica difícil abri-lo sem, antes, preparar o ambiente interior.

A criança que fui, e que nunca deixei de ser, olha-me através de uma tênue e transpa­rente cortina e sorri. Sorriso franco e puro esparramado pelo rosto. Nos olhos, um tom de verde-esperança, brilhando muito. Nas faces, o vigor de uma pele acetinada sem sulcos nem cicatrizes. Menina alegre. Menina que perdi de vista por alguns momentos e que retorna agora, refletida no espelho.

Retribuo o seu sorriso como quem reconhece o inevitável e rendo-me aos seus encantos.

Impossível deixar de vê-la, por dentro, nas entrelinhas do que sou. Um pouco criança, outro tanto gente grande. Até porque, quando admiro a vida, olho de dentro para fora, com os mesmos olhos da criança que sempre esteve comigo.

Surpreendo-me, às vezes, com o nariz colado na vidraça, espiando o dia. E, ainda, gosto de comer a casquinha do sorvete e de passar a ponta do dedo no merengue do bolo de aniversário.

Em algum canto da minha alma habita a criança que acredita, que espera, que confia. Graças a ela sobrevive a mulher em meio a desencantos e tristezas. Se a menina não existisse nos bastidores a espreitar-me silenciosamente, há muito eu teria esquecido o texto e o meu desempenho seria um constante fracasso. A criança que respira em mim é o contrarregra indispensável no palco da existência.

Pois, para a criança que cada um de nós carrega no coração, é que rabisco essas linhas. Em homenagem a essa presença indelével que permanece em todos nós, apesar de, em muitos instantes, ser relegada a habitar sótãos e porões de esquecimento, escrevo um tributo de agradecimento.

Bem-vinda sejas, em todos os minutos em que perco a fé e me fortaleces na crença, em que mergulho na amargura e me trazes a doçura, em que remoo ressentimentos e me recordas o perdão, em que sucumbo de preocupações e me revelas as soluções, em que permito a seriedade e me presenteias com risos fartos, em que sinto solidão e me fazes companhia.

Todos os dias são dias de ser criança outra vez, uma vez mais. Ser a criança que nunca morreu no nosso íntimo e mais precioso território. Aquele pedaço que justifica todos os percalços e que dignifica todos os tropeços. A ingenuidade restaurada no dia a dia e que nos transforma em heróis ao relermos as histórias de nossas próprias vidas, narradas pela criança que abraçamos nas entrelinhas de um tempo que esqueceu de envelhecer. E que assim seja!

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