Violência obstétrica: Projeto de lei quer tornar o assunto mais acessível e informal para mulheres pelotenses

Gestantes buscam conhecimento em grupos de apoio organizados pelo Nascer Sorrindo (Foto: Vitória Leitzke/JTR)

Menina ou menino? Qual nome colocar? Dar colo ou não deixar acostumado(a)? As dúvidas das mães são muitas durante a gestação. Um momento delicado e sensível, que deveria ser de tranquilidade e boas experiências para as mamães e bebês, pode vir a ser o maior pesadelo de suas vidas. Seja verbal, moral, psicológica e, até mesmo, física, a violência contra a mulher também pode deixar suas marcas no momento mais importante da gravidez: o parto.

Segundo dados preliminares de pesquisa do Programa Rede Cegonha, fevereiro de 2012 a janeiro de 2013, disponíveis no portal de Acesso à Informação do Governo Federal, em pesquisa com 12.465 mulheres, os dados do estudo analisaram a violência obstétrica em relação à peregrinação no momento do parto (19,5%), retirada do bebê do contato com a mãe depois do nascimento (51,7%) e a presença do acompanhante no momento do parto (54,95% informaram que o serviço não permitiu e 16,6% não sabiam que podia ter acompanhante). A pesquisa apontou também que dados como o uso de ocitocina de rotina, episiotomia, jejum durante o trabalho de parto, manobra de Kristeller e outros careceram ser acompanhados na época.

Em outro estudo, “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (Sesc), em 2010, a violência obstétrica é realidade para uma em cada quatro mulheres no Brasil, podendo ser ainda mais significante, tendo em vista que as agressões podem ser vistas com naturalidade pela mulher e família.

Com objetivo de mudar esse fato, em Pelotas, a vereadora Fernanda Miranda (PSOL), junto ao coletivo Nascer Sorrindo e ao vereador Reinaldo Elias, o Belezinha, (PTB), apresentou o Projeto de Lei nº 1195/2019, que dispõe sobre medidas de proteção contra a violência obstétrica. Aprovado por unanimidade no último dia 2, o PL gerou debate ao chegar à prefeita Paula Mascarenhas (PSDB) para sancionamento, quando o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) e o Conselho Regional de Medicina (Cremers) mostraram descontentamento.

“Violência obstétrica não existe”, afirma Simers         

De acordo com Marcelo Matias, presidente do sindicato médico, o termo não existe e abre a porta para uma judicialização maior na área. “O projeto é inadequado e tem como objetivo denegrir a categoria médica. Não temos como estabelecer uma intersecção com o grupo defensor”, afirma o obstetra.

“Ele [o PL] tem artigos positivos, como a questão mais humanitária do parto, que sou favorável, mas a obstetrícia de Pelotas não tem condições de fazer parto humanizado no município. Entregamos um abaixo assinado com 70 assinaturas de pediatras e obstetras da cidade contra o projeto”, ressalta.

Ainda, conforme o presidente, há a possibilidade de descredenciamento de profissionais da área do Sistema Único de Saúde (SUS) se sancionado. “Não é uma ameaça, é uma informação real”, garante.

Assunto em alta       

Para a presidente do grupo Nascer Sorrindo, Laura Cardoso, a situação já é satisfatória só pelo fato do assunto estar sendo mais debatido atualmente. “Temos o grupo há cinco anos e nunca vimos a violência obstétrica ser tão discutida como hoje em dia. Se não conseguirmos sancionamento, pelo menos vai valer o conhecimento das mulheres sobre o tema”, comemora.

“Geralmente só a mulher e o profissional que realiza a violência presenciam o ato e muitas vezes ela não reconhece como violência. A questão não é uma invenção das mulheres. Violência obstétrica pode ser cometida por qualquer membro da equipe, não só o obstetra”, comenta.

A coordenadora do Nascer Sorrindo, Leila Duarte, explica que a mulher tem direito de ter opinião compartilhada com a equipe médica, salvo em casos com risco de vida da mãe e do bebê. “É importante ressaltar que quando falamos de decisões compartilhadas, estamos falando de uma mãe bem, consciente, não que esteja desmaiada e/ou inconsciente”, informa.

A vereadora Fernanda destaca que nenhum projeto de lei tem o poder de criminalizar e que a intenção é apenas de informar às mulheres pelotenses sobre seus direitos. Em entrevista na última quarta-feira (24), a parlamentar afirma que, conforme reunião ocorrida com o Executivo, Simers e Cremers, foram realizados vetos em artigos para que seja possível o parecer da prefeitura de veto parcial.

“Gostaríamos de, com a lei, informar às mulheres que a peregrinação por falta de leito durante o trabalho de parto ativo é uma violência obstétrica, que exames de rotina durante a gestação que as gestantes precisam pagar porque no SUS não chegariam a tempo é uma violência, que a falta de informação sobre parto normal e cesárea é uma violência”, defende Fernanda.

Segundo a prefeita Paula, a terminologia é o que menos importa para as gestantes. “Tivemos uma boa reunião [na última segunda-feira (22)], e acredito que seja esse o caminho: entrar num acordo para que um novo PL seja feito, o qual eu me dedicaria junto aos autores para não deixar morrer um assunto que é tão importante”, fala.

Atualização                                                                                                           

*Com informações da Assessoria de Imprensa

Até o fechamento da edição, na quinta-feira (25), a prefeita ainda não havia se posicionado quanto ao PL. Em reunião ontem (25) com a vereadora Fernanda, Paula vetou o projeto de lei, explicando à legisladora as razões do Executivo para o Veto Total à proposta. Além disso, durante o encontro, foi realizada entrega simbólica, à Fernanda, de outras duas leis de autoria da vereadora que foram sancionadas. Uma dispõe sobre a criação da Semana de Conscientização dos Direitos das Gestantes e a outra sobre a ampliação da divulgação do Disque 180 (Central de Atendimento à Mulher).

Em nota divulgada pela Assessoria de Imprensa da prefeitura, Paula justificou o veto com a necessidade de ampliação do diálogo entre as partes favoráveis e contra o PL. “…Este Executivo restou inteiramente convencido de que, em nome do mais genuíno interesse público, é possível e necessária a rediscussão do assunto, seja pelos aspectos polêmicos trazidos pela redação do PL, seja pelo envolvimento de valores como a vida humana, a ética das relações médico-paciente e o adequado exercício profissional, dentro das condições oferecidas pela realidade”, explica.

Mas afinal, o que é violência obstétrica? 

Para o Ministério da Saúde, a violência obstétrica é aquela que acontece no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento ao abortamento. Pode ser física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas. Essas práticas submetem mulheres a normas e rotinas rígidas e muitas vezes desnecessárias, que não respeitam os seus corpos e os seus ritmos naturais e as impedem de exercer seu protagonismo.

Procedimentos como indução do parto, episiotomia e até a cesariana devem ser bem indicadas, esclarecidas e respeitar a autonomia da mulher. Quando realizada de forma desnecessária e imposta também são consideradas violência obstétrica. Procedimentos desnecessários, agressivos e invasivos, como dieta e até a cesariana quando imposta e desnecessária. Episiotomia é um trauma perineal e não existem evidências confiáveis que o uso indiscriminado ou rotineiro desta tenha um efeito benéfico para a mulher e o bebê, porém há evidências claras de que pode causar dano.

Relatos coletados pelo grupo Nascer Sorrindo, todos em Pelotas   

“Aguardávamos a chegada do bebê, precisaram realizar um parto de urgência com o uso de fórceps, equipamento utilizado para forçar a retirada do bebê, o que acabou lesionando a criança.Meu filho foi tirado na marra e pode ter sequelas pelo resto da vida”, Maria*, 2019.

“Na hora do parto um médico disse ‘Vamos d’uma vez! Tem jogo e eu não quero perder!’. Ganhei meu filho, na hora não me deixaram ver o rosto dele, saíram com ele às pressas… Ele nasceu as 11:45 e teve 15 paradas cardíacas e 3 respiratórias. Ele não resistiu, isso me corta o peito!… Um familiar assinou um documento que dizia para eu não ir ao enterro, o que foi horrível! Levaram meu filho para eu ver, ele ainda estava morninho”, Jéssica*, 2007.

“Meu filho veio ao mundo em uma maternidade de Pelotas, na qual, pelo doutor, sofri ofensas verbais. Na hora, como muitas mães imaginam, pensei ‘não vou revidar’ vai que ele mate a mim e meu filho”, Letícia*, 2013.

“Ele foi um animal comigo. Me lembro do doutor apertando a barriga da outra moça no quarto e saindo muito sangue! Ele nem olhava para nossa cara, só chegava e metia a mão”, Margareth*, 2013.

“Eu ouvi do médico: entrou tem que sair, mamãe!”, Cássia*, 2013.

“Quando falamos em dinheiro ele me internou a meia noite e só pela manhã do outro dia fez o meu parto, porque ele estava de plantão, mas precisava dormir! (palavras do próprio médico)”, Carla*, 2013.

“Fui extremamente machucada por médicos estudantes da maternidade, depois fui mandada para outra maternidade onde eu sofri abuso moral pelo médico que indagava o porquê de eu estar chorando, que na hora de eu abrir as pernas pra fazer filho eu não chorei, que eu teria que dar graças a Deus por ele fazer uma cesárea em mim!”, Tereza*, 2016.

*Nomes alterados para preservar a identidade das vítimas

O Ministério da Saúde institui a Rede Cegonha, inicialmente pela Portaria GM/MS nº 1.459 de 24 de junho de 2011 e mais recentemente pelas Portarias de Consolidação, cujo objetivo é a mudança do modelo de atendimento obstétrico buscando abolir as práticas violentas e vexatórias denominadas “violência obstétrica”. Para sua implementação, são realizados diversas formas de capacitações e incentivos.

O Ministério Público Federal (MPF), que identificou a prática como uma violência sexual, garante que toda gestante tem direito a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério, bem como toda mulher grávida e todo recém-nascido têm direito à assistência de forma humanizada e segura, o que inclui: ser chamada pelo nome, ser tratada com respeito e cordialidade, ter suas dúvidas esclarecidas, compartilhar as decisões sobre as condutas a serem tomadas, ter liberdade de posição e de movimento durante o trabalho de parto, ter métodos – farmacológicos ou não – para alívio da dor, não ser submetida a episiotomia de forma rotineira e permanecer em alojamento conjunto com o bebê desde o nascimento.

Para saber mais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou, em seis línguas diferentes, um material de prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Basta acessar pelo link: bit.ly/2PsSKvX

Conheça práticas que são condenáveis

• Maus tatos;

• Xingamentos;

• Mandar ficar quieta, não se mexer, não expressar dor, não gritar;

• Recusa de admissão em hospital ou maternidade (fere a Lei 11.634/07);

• Proibição da entrada de acompanhante (fere a Lei 11.108/2005)

• Recusa em esclarecer dúvidas da paciente;

• Uso de soro com ocitocina para acelerar trabalho de parto por conveniência médica, quando o trabalho de parto está evoluindo adequadamente (ocasiona processo doloroso de contrações não fisiológicas);

• Toques sucessivos e por várias pessoas;

• Deixar a mulher nua e sem comunicação;

• Raspar os pelos pubianos;

• Lavagens intestinais;

• Impedir a mulher de se alimentar ou ingerir líquido;

• Amarrar as pernas e braços da mulher;

• Afastar mãe e filho após nascimento só por conveniência da instituição de saúde (exceto em casos com risco de vida da mãe e/ou do bebê);

• Impedir ou dificultar o aleitamento materno na primeira hora (exceto em casos com risco de vida da mãe e/ou do bebê);

• Realizar episotomia rotineira (quando no parto vaginal é realizado o “pique”, corte da musculatura perineal da vagina até o ânus ou em direção à perna, com o objetivo de aumentar a área de acesso do obstetra ao canal vaginal de parto) porque a prática é recomendável entre 10 a 25% dos casos;

• Manobra de Kristeller (o profissional se coloca sobre a mulher e pressiona sua barriga empurrando o bebê pelo canal vaginal para sua saída mais rápida);

• Ruptura artificial da bolsa como procedimento de rotina;

• Realização de cesarianas desnecessárias, sem o consentimento da mulher ou apenas por conveniência do médico.

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