
São 29 anos de amor exigente. Exigente e humanizado. Nessas quase três décadas de atuação, a Casa do Amor Exigente (Caex) luta não apenas para se manter mas para recuperar seres humanos na batalha contra o álcool e as drogas. Ligada à Igreja Católica, a entidade dispõe de dois espaços para atuar: um no Instituto de Menores Dom Antônio Zattera (IMDAZ), onde faz triagem dos acolhidos e recebe semanalmente suas famílias para reuniões coletivas, e outro na Vila Princesa, junto a BR 116, onde ocupa 10 hectares de uma propriedade rural. É lá, na fazenda, como é conhecida, que por nove meses dependentes químicos permanecem em tratamento para se livrar do vício em substâncias químicas.
“Assim como o dependente se trata na fazenda, as famílias se tratam aqui, elas também adoecem”, diz José Adalberto Júnior, estudante de Odontologia, ex-dependente químico e hoje um dos porta-vozes da Caex. Atualmente, 55 pessoas estão em tratamento no local. Todas via Sistema Único de Saúde (SUS). Há atendimento psicológico, psiquiátrico, assistente social, profissional de educação física (o espaço conta com academia), enfermeiro, monitores com curso técnico para atender em comunidades terapêuticas, todos ex-usuários, além de apoio espiritual – os “12 passos”, de orientação cristã, os mesmos adotados nos Alcoólicos Anônimos (AA), mas incluídas passagens bíblicas – e demais atividades.
“Na rua muitos dos nossos acolhidos perderam contato com a espiritualidade, com a disciplina, com o trabalho, nossa ideia é reinseri-los no mercado, na sociedade, no sistema produtivo”, afirma Miguel Ângelo Caruccio, colaborador da Caex e também ex-dependente químico que após a passagem pela entidade superou a dependência do álcool.
Hoje há 15 pessoas à espera de vagas e a internação não é compulsória. “O tratamento é voluntário, quem está lá é porque quer”, diz Júnior. “Quem quer ir embora, vai – a gente tenta dissuadir ao máximo porque sabemos que é uma doença, a fissura vem, e ninguém é forçado a ficar, nosso tratamento é humanizado, não queremos que a pessoa apenas pare de usar drogas, mas reaprenda a viver”, reforça.
Por isso o tratamento aposta em atividades práticas inclusivas. Na Caex, o acolhido trabalha na horta comunitária, em serviços de manutenção da Casa, na cozinha, participa de reuniões com seus pares para troca de experiência, onde se fala sobre abstinência, fissuras, riscos de recaída, desejo de desistir e também, claro, da possibilidade de superação.
“Tem horário para higienização, almoço, lanche, janta, horário para dormir e, como é uma Casa católica, tem hora para trabalhar a espiritualidade, independentemente da religião”, afirma Júnior.
A questão da espiritualidade é apenas uma parte do trabalho da Caex. A entidade preocupa-se ao longo do tratamento em reinserir o paciente no mercado profissional. Tanto que após os nove meses, se não tiver uma oportunidade, pode permanecer na fazenda até se encaixar em posto de trabalho. E para isso não são poucos os cursos profissionalizantes disponibilizados aos pacientes. Na Caex são oferecidas aulas de marcenaria, gastronomia, informática, frentista e supletivo.
“Somos uma comunidade que propõe um programa de reinserção, prepara o acolhido para a vida, para o mercado de trabalho e o recoloca de forma funcional na comunidade”, explica o assistente social Argelino Conterato Furtado.
Tratamento
Na primeira fase, que leva de um a três meses, é o período que o paciente precisa para “se reconhecer”, nas palavras de Júnior. “Usei drogas durante 10 anos. Nesse período eu não sabia quem eu era, eu escondia meus sentimentos, minhas emoções, minhas frustrações no álcool e na cocaína. Quando se para é preciso redescobrir quem somos de verdade, como lidamos com nossos sentimentos”, diz ele. “É quando cai a ficha de quem fomos”.
Após esse período, o tratamento remete o paciente a se perguntar o porquê de apelar a uma substância química. Rememora sobre o relacionamento em família, com os pais, na escola, com amigos. Em geral essas impressões se colocam no papel. Nessa altura do tratamento o paciente já tem um “padrinho”, que ele próprio escolhe.
É para esse que são abertas todas as elaborações desse período de redescoberta, no processo de superar a dependência química. Começa então uma troca, um retorno e um diálogo. A partir dos seis meses, terceira fase, o paciente é conduzido ao processo de reinserção social. Pela primeira vez deixa a fazenda para passar um período do mês em Casa até o fim do tratamento.
Epidemia de crack
O perfil se alterou. Se há duas décadas, quando Caruccio procurou a Caex para se livrar do álcool, o usuário chegava à comunidade terapêutica pelo uso de droga injetável e medicamentosa (“boletas”, como eram chamadas), atualmente, 95% dos casos é por dependência de crack. “É uma droga que está destruindo”, diz Furtado. Ex-dependente da droga, ele não tem dúvidas: “[o crack] te atira no fundo do poço em questão de meses, tu jogas fora todo o teu patrimônio, material e afetivo, veio para devastar”, lamenta.
De acordo com ele, o crack tem poder para colocar as pessoas no mundo paralelo, alimentando facções criminosas. O dependente, boa parte das vezes, chega na comunidade conectado a esse mundo, que o assistente social classifica como “defensivo-agressivo”. “Só depois ele assimila o programa e aceita o tratamento. Leva tempo, quem usa crack há cinco anos não vai se curar tomando um remédio, é um processo, que exige reformular caráter, comportamento e conduta”.
Outro problema é o índice de recaída, similar ao da cocaína. Atinge em torno de 50% dos dependentes. Detalhe: segundo a equipe da Caex, está disseminada em toda sociedade. “Do pobre ao rico, do negro ao branco, entre católicos, evangélicos, é uma epidemia”.
Manutenção
Além de verbas do SUS, a Caex conta com apoio do Banco Madre Tereza de Calcutá e do Banco de Alimentos Pelotas, da Arquidiocese de Pelotas e da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), que disponibiliza serviços de saúde. Durante o ano, a direção da Caex faz campanhas de arrecadação, eventos e bingos. Paróquias do município também contribuem com o trabalho da entidade.
Interessados em colaborar de qualquer forma podem se dirigir ao escritório da Casa, no Instituto de Menores, na avenida Domingos de Almeida, 3.150, Areal, de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, ou pelo telefone (53) 3272-3900.