
Viajar é preciso. Aos 49 anos, a ex-dona de casa Luciana Klenicke, pelotense nascida na localidade de Santa Silvana, interior do município, estima somar 100 mil quilômetros rodados na cabine de um caminhão. Detalhe: no volante. É a própria que conduz seu destino a bordo do Volvo FH bitrem com capacidade para 37 toneladas de carga, principalmente grãos.
Luciana está nessa há cinco anos, quando o atual companheiro, Luiz Martins, decidiu apostar no mercado de transportes de carga como nova ocupação profissional. Até então seu principal ganha-pão vinha do trabalho como mecânico. Já ela era dona de casa, o que havia sido a vida inteira.
Porém, em um novo estado civil: viúva, com pensão do primeiro marido, ex-funcionário da CEEE, pela metade e mãe de três filhos, matutava formas de melhorar a condição socioeconômica da família, abalada financeiramente pela perda inesperada.
Rotina alterada
“No início queríamos trabalhar e passear, me entende”, pergunta ela. Rolou. Conforme Luciana, ela e Martins já conheceram desde capitais a estados inteiros. Fortaleza, quase todo Goiás, moraram temporariamente no interior da Bahia antes de se estabelecerem em Palmas (TO), nos primeiros dois anos de forma provisória, há um com residência fixa. Também já fizeram Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, regiões do Pará, São Luiz do Maranhão, Salvador e quase todo Paraná. “Juntamos o útil ao agradável”, diz, com satisfação. Até então, antes de se tornar caminhoneira, só tinha ido ao Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Montevidéu – como turista. Hoje em dia, ela e o marido, cada um em um caminhão, se dirigem mais à região Centro-Oeste. A motivação é profissional: “Nossa função é grão, puxar grãos”, afirma.
Início
Embora somente há cinco anos no ramo e há dois habilitada na categoria E, o universo do caminhão não lhe é estranho. O pai, Orlando, e o irmão, Joel, atualmente em Luiz Eduardo Magalhães, interior da Bahia, são caminhoneiros. É ambiente familiar para ela, embora esteja há muito tempo afastada.
Começou acompanhando Martins nas primeiras viagens. Parceria constituída e sociedade consolidada, o primeiro caminhão do casal foi adquirido em conjunto. Logo no segundo frete e com muitas parcelas ainda por pagar que Luciana precisou assumir como motorista. Os dois vinham de São Borja, Fronteira Oeste – ele no volante, com o pulso quebrado. Na altura de Caçapava do Sul, BR 392, a 197 quilômetros de Pelotas, a dor estava insuportável.

Com alguma experiência em estradas vicinais e em trechos curtos com o caminhão vazio pelo interior dos municípios, se ofereceu para substitui-lo. Na época já dominava certos afazeres da nova ocupação. Ajudava a montar carreta, corrente, puxar e montar lona. “Te anima?”, ele perguntou. Não deve ter ouvido a resposta. Além de gostar de dirigir, Luciana não fazia segredo: queria muito a experiência de conduzir “carregada”, como se diz no jargão das estradas. “Depois fui pegando outros trechos de Santa Maria para lá, sem morro e subida, dava um frio na barriga – hoje não mais”, relata.
Luciana está com o marido na cidade natal desde abril. Motivo: ele precisava ir a Santa Catarina para “pegar um rodo” (caminhão rodotrem), seu novo caminhão. Veio junto com ele em um caminhão cavalinho (sem reboque). Decidiram esticar a estadia a fim de participarem do casamento de um irmão de Luciana, marcado para sábado passado. O retorno a Palmas está previsto para o fim do mês. Nesses três meses não pararam de trabalhar. “Nunca ficamos sem frete”, diz ela. O caminho é sempre em direção à Fronteira Oeste e adjacências, para municípios como São Borja e São Luiz Gonzaga.
E onde está melhor de trabalhar, Luciana? A caminhoneira não faz rodeio: “Lá”, responde, de pronto. “O máximo que eu ando são 200 quilômetros”, acrescenta. Não se refere apenas as condições de trabalho: o retorno financeiro também é mais vantajoso. Ela diz que em Tocantins o frete está a R$ 100 a tonelada em trechos bem mais curtos. Compara: na última viagem, até São Roque (região de Santa Rosa), rodou 583 quilômetros pelo mesmo valor. Transportou adubo e precisou voltar com soja para descarregar no Porto do Rio Grande para, assim, compensar as despesas. “[Lá] é outra realidade, os custos de manutenção ficam bem mais baixos. Faço troca de óleo uma vez por ano. Aqui é uma por mês”, reclama.

Ressalva a boa estrutura dos paradouros no estado, mas não perdoa a condição das rodovias. “É um dos piores estados que tem, quase não tem faixa dupla e não se pode rodar das 18h às 6h, é ruim para quem tem que cumprir horário. O que é bom para nós aqui é o Porto, só. De Santa Catarina para cima, tudo é melhor”, reclama.
Embora nunca tenha sofrido abertamente com preconceito ou assédio, diz perceber alguma reserva entre os gaúchos pela sua condição de mulher numa profissão majoritariamente masculina. Segundo Luciana, só aqui no RS ouve perguntas que não são feitas em nenhum outro lugar do país. “Só aqui me perguntam se estou acompanhada ou se ando sempre com o marido, acho que o gaúcho é mesmo mais conservador e machista, se chega em um paradouro ficam olhando, já até ouvi que ‘chegou uma mulher’ – em outros estados nunca me deparei com esse tipo de coisa, é mais naturalizado”, conta.
Na estrada, rodando, o ambiente é tranquilo. Susto mesmo, apenas uma vez, com o marido ao volante, descendo a região de Chapecó (SC), quando o sistema de freios não funcionou e o casal quase se envolveu em um acidente. Tentativa de assalto também apenas em uma oportunidade, em São Paulo, quando ainda experimentavam o transporte de carga. Hoje, tanto ela como Luiz Martins estão no grão, o que está valendo a pena, conforme a motorista. Além da casa própria em Palmas, consegue manter a antiga em Pelotas, no bairro Simões Lopes, onde moram os filhos. Se continuar assim, pretende para daqui a uns meses trocar para um caminhão mais moderno, automático. Seu FH bitrem ainda é todo manual.
Mesmo sem as facilidades de um veículo mais moderno, concorda com o que cresceu ouvindo: é melhor que dirigir carro. A visão que a altura da cabine proporciona é, para a caminhoneira, incomparável. Bom para percorrer estradas que oferecem boas paisagens. Quanto a isso, elege os estados de Goiás e Paraná. Cita também Barcarena (PA). Se sente em casa no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. “Me sinto em casa, costuma ter muito nevoeiro pela manhã”, destaca. E apesar das dificuldades que enfrenta para trabalhar no estado onde nasceu, destaca que o RS também tem seus valores neste quesito. Diz que o trajeto até a distante São Borja conta com trechos de rara beleza. “Em alguns as árvores cobrem a estrada, é muito bonito.”
Perrengues
Na viagem realizada na segunda semana de julho, em direção a São Luiz Gonzaga, na subida a Jaguari, uma válvula escapou e o radiador ficou sem ar. Resultado: o caminhão perdeu as forças e foi obrigada a encostar. Menos mal que o esposo é mecânico. Estacionou logo atrás e resolveu o problema. Mais uns quilômetros adiante e a falha se repetiu. Desta vez no dele. “Acho que era alguma coisa nos desviando, o pessoal lá pra cima usa muito este termo, aprendi lá”, ri.
Também não tiveram problemas com o ciclone, como árvores caídas interrompendo o fluxo. Na madrugada da quinta-feira (13), no auge do fenômeno na Zona Sul, estavam a salvo em Santiago, a centenas de quilômetros, onde pernoitaram. Segunda-feira passada descarregou a soja no Porto do Rio Grande, onde carregou adubo para mais uma vez tomar o caminho até a Fronteira Oeste gaúcha.
Esta é a rota do casal até a volta ao Tocantins, onde cargas de milho os esperam para rodar não mais que dezenas de quilômetros até os terminais da Vale do Rio Doce. “É tudo pertinho, gasta menos diesel, pneu dura o ano inteiro, aqui já precisei comprar dois pneus, já recapei quatro, troquei óleo. Lá o que se precisa fazer em um ano se faz em dois meses aqui, o custo é bem menor, aqui é só trabalho e mais nada”.
Mulher e caminhão, parceria possível
Luciana Klenicke não tem dúvidas de que lugar de mulher também é ao volante de um caminhão. As mulheres que querem seguir o mesmo caminho, é uma entusiasta: “Todo mundo se ajuda neste meio, se faz muita amizade de tudo quanto é lado, não conheço motorista que possa falar mal. E financeiramente dá retorno, minha vida melhorou neste aspecto”, responde. Ainda lhe dói a distância dos filhos, que permaneceram em Pelotas. Luciana “saiu de casa” quando o caçula ainda tinha 15 anos. Está com 20. “Estive muito presente durante toda a infância de cada um. Agora é hora de se virarem, claro que sempre podendo contar comigo – eles sabem disso”.