
Por Matheus Garcia e Julia Barcelos
As histórias e as razões são as mais diversas. Desde aqueles que foram parar na rua por conta da falta de oportunidades, passando por quem perdeu tudo em razão de vícios ou circunstâncias alheias à vontade humana e não restou outra alternativa, chegando até relatos, acreditem, daqueles que optaram por morar sob marquises de prédios ou em praças das cidades sem ter enfrentado nenhum percalço.
A vida das pessoas em situação de rua não é das mais fáceis. O alimento é obtido através da caridade da população ou de recursos do poder público. A cama, muitas vezes, é o chão duro, papelões ou colchões velhos. As cobertas, quando se têm, quase não protegem do relento ou são divididas com cães, que acabam sendo, em alguns casos, a única companhia em meio à insegurança das ruas. A vulnerabilidade de fazer das vias públicas sua moradia torna-se ainda mais complicada com a chegada do inverno.
Ressalta-se que a pessoa em situação de rua não necessariamente é quem dorme embaixo de marquises ou lonas, mas que, por definição, se sustenta ou passa mais tempo na rua do que em algum ambiente residencial. Por exemplo: quem vende bala na sinaleira, trabalha com reciclagem, ou transita na rua durante o dia, mas dorme em um albergue, na Casa de Passagem ou em outro local emprestado.
Pessoas em situação de rua em números
Em Pelotas, 699 pessoas autodeclaradas, ou seja, que se cadastraram junto ao Cadastro Único (CadÚnico), vivem em situação de rua atualmente, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS). O número representa 0,2% do total de habitantes do município, que é de 338.942 pessoas, conforme o censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já cerca de 80 pessoas realmente moram na rua, dentre andarilhos e nômades que saem de Pelotas, vão e voltam para outros municípios. Neste caso, a taxa representa 0,02% do total da população pelotense.
Para o secretário de Assistência Social, Tiago Bündchen, a crise sanitária de Covid-19 colaborou para o crescimento do número de pessoas em situação de rua. “Não só em Pelotas, mas é um cenário nacional, o aumento das pessoas em situação de rua. A pandemia ampliou e isso se reflete até hoje”, ressaltou.
Em diversos cantos da Princesa do Sul, o cenário dos desabrigados se mistura aos belos e requintados prédios históricos e também aos modernos empreendimentos. A SMAS evidencia o crescimento da população de rua depois da pandemia em números. De acordo com a pasta, o Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua, o Centro Pop, um dos serviços que presta assistência a pessoas em situação de rua, atendeu 371 pessoas em junho de 2020. Entre fevereiro e março do mesmo ano, antes da crise sanitária, os atendimentos chegavam a 140 por mês. Na ocasião, isso representou mais de 60% de aumento no número de pessoas que procuraram serviços como pessoas em situação de rua.
Intensificação das abordagens durante o inverno
O governo municipal afirma que tem intensificado as abordagens sociais para oferecer abrigo às pessoas em situação de rua e evitar que enfrentem as noites de inverno nas ruas. Além do Centro Pop, o acolhimento também acontece na Casa de Passagem, localizada junto ao prédio do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) São Gonçalo, na rua Dona Darcy Vargas, nº 212.
As pessoas que aceitam serem acolhidas recebem alimentação, têm acesso a banho e a uma das 55 camas com travesseiro e cobertores para passar a noite. Se necessário, ainda há 30 colchões para atender mais usuários, bem como outros serviços ligados à psicologia, assistência social e saúde. Os atendidos passam por um acolhimento inicial com revista e planilhamento diariamente antes de entrarem. Em caso de pessoas muito idosas, inabilitadas ou doentes, é possível a permanência no local também durante o dia. O espaço abriga ainda os cães do público assistido e funciona a partir das 19h. O contato é o (53) 3199-8867.
Segundo Andreia Fernandes, coordenadora da alta complexidade e dos abrigos municipais, a grande maioria dos usuários procura o local há anos, mas os demais também serão atendidos pela equipe em todas as suas demandas. Além disso, reforça que o enfoque do acolhimento é específico para pessoas em situação de rua no período noturno. “Não abrimos mais cedo porque precisamos de um efetivo da guarda militar presente para fazer as revistas, retirar objetos cortantes, isqueiros e tudo que puder ser prejudicial aos outros”, explica. De acordo com a coordenadora, esses cuidados são necessários devido às brigas internas entre os usuários.
Bündchen salienta que muitos preferem o Centro Pop, localizado na rua Três de Maio, nº 1.070, no centro da cidade, que oferece café da manhã e da tarde, além de oficinas, banho, roupas e guarda de pertences. O espaço também é disponibilizado como endereço para receber correspondência e como endereço social para fins de indicação de residência para serviços de saúde, CadÚnico e outros que pedem endereço. O local, para aqueles que a equipe entende como necessário, dá o encaminhamento para o Restaurante Popular, serviço que a Prefeitura presta mediante contrato com a ONG Gesto. “Investimos cerca de R$ 1,2 milhão por ano para fornecer 400 refeições diárias no Restaurante Popular, 200 gratuitas e outras 200 a até R$ 4,00. Temos equipes de abordagem social, tanto terceirizadas, que são de duas ONGs, a Vale a Vida e a Gesto, quanto também a equipe do Centro Pop. E, agora, estamos recebendo os contratos administrativos para fazer um outro tipo de projeto, o Hashtag Tamo Junto, que também faz abordagem social com equipes trabalhando 8h por dia, cinco educadores sociais e uma assistente social”, informou Bündchen.
O Centro Pop ainda disponibiliza ao público o encaminhamento de documentos e benefícios. O local abre de segunda a sexta-feira, das 8 às 17h. O telefone é o (53) 3199-8115.

Como funciona a abordagem?
De acordo com o secretário, as pessoas são abordadas na rua pelas equipes. A maioria são homens adultos; muitos deles, usuários de algum tipo de droga, incluindo álcool, e todos com os vínculos familiares desfeitos ou, no mínimo, abalados. Alguns revelam o desejo de se recuperar e voltar para junto da família. Outros têm a rua como casa.
Neste momento, são oferecidos todos os serviços disponíveis. Se a pessoa quiser sair de onde está, seja para dormir ou para almoçar, procura-se, em um primeiro momento, criar um vínculo, porque o intuito da abordagem é tentar retomar o vínculo familiar da pessoa em situação de vulnerabilidade. Caso precise de serviços de saúde ou por dependência química, também são feitos esses encaminhamentos, sempre tentando criar relações para a confiança mútua entre equipe e pessoa assistida para, a partir daí, tentar o resgate. São oferecidos os serviços do município, que incluem cursos de capacitação por meio do Capacitar Pelotas, entre outras iniciativas.
Os que não quiserem acompanhar a equipe recebem um macacão impermeável para se proteger da chuva, água mineral e cobertores. Sobre a recusa em aceitar o acolhimento, Bündchen avalia que “as pessoas estão sem esperança, sem perspectiva, muitas tiveram os vínculos familiares rompidos e só querem ficar isoladas, buscando como atenuante o uso de álcool e outras drogas. Uma parte também tem algum tipo de transtorno mental, o que dificulta o entendimento e a percepção de que utilizar os serviços é uma saída da condição em que se encontram”.
Somado a isso, muitos trabalham à noite, coletando materiais recicláveis ou cuidando carros, o que inviabiliza a ida para a Casa de Passagem, e o afastamento deles, mesmo que por apenas algumas noites, pode fazer com que percam o ponto bom, onde já são conhecidos e costumam cuidar de carros, receber recicláveis e doações.
Apesar das dificuldades, o secretário vê perspectiva no trabalho. “O caminho é difícil, é demorado, mas precisamos começar. Já conseguimos inscrever algumas pessoas nos cursos do Capacitar Pelotas e se elas concluírem terão novas possibilidades”, diz.
Tanto as pessoas em situação de rua quanto em qualquer situação de vulnerabilidade podem acessar a Rouparia, no prédio da SMAS, na rua Marechal Deodoro, nº 404, onde ficam roupas, calçados e outras doações recebidas da comunidade. É necessário ser encaminhado por um dos serviços de assistência social. Também são oferecidos cobertores a quem precisar.
Relato
Entre um dos assistidos pela Casa de Passagem está um homem, de iniciais J.R.F.S, de 43 anos, que quebrou a perna em um acidente de bicicleta. Com o membro inferior ainda imóvel por pinos, J.R.F.S está sendo acolhido integralmente há pouco mais de um mês. O homem conta que frequentava abrigos desde criança. “É que eu não me dava muito bem com minha mãe. Depois, mais velho, saí para aquele lado do bairro Fátima. Aí, comecei a frequentar uma rua, que até foi onde aconteceu o meu acidente”, relembra. “Eu tinha bebido demais, acabei batendo e caindo da bicicleta. Agora, faz um mês que não bebo, quero deixar a bebida alcóolica”, afirmou.
Andreia conta que, principalmente no inverno, são realizadas ações com vans para buscar essa população e levar até a Casa de Passagem. Porém, muitos negam o acolhimento para permanecer na rua e poder fazer uso de entorpecentes. “Nós identificamos que, hoje, a maioria das pessoas nessa situação entraram nela por escolhas próprias. Não porque não têm casa ou família, mas sim por não querer incomodar os familiares com essa escolha deles de usar drogas”, acrescentou.
Dessa forma, mesmo com as baixas temperaturas dos últimos dias, muitos usuários de drogas nessas situações continuam permanecendo na rua. Apesar disso, a coordenadora afirma que é notório o aumento de usuários nessa época do ano. Em dias normais, o número de acolhidos diários fica em torno de 50 a 60 pessoas. Já em dias muito frios ou chuvosos, essa quantidade pode chegar a 85 ou 90 acolhidos.
Quando perguntado sobre o acolhimento, J.R.F.S afirmou que tem sido muito bem tratado pela equipe, ainda mais nesse período de frio e com sua perna inabilitada. “Eu digo que elas são como mães para a gente”, salientou.
