Com quase 700 pessoas em situação de rua, Pelotas intensifica atendimentos no inverno

O dado foi divulgado pela Secretaria Municipal de Assistência Social com base em autodeclarações no Cadastro Único. (Foto: Samantha Beduhn/JTR)

Por Matheus Garcia e Julia Barcelos

As histórias e as razões são as mais diversas. Desde aque­les que foram parar na rua por conta da falta de oportunida­des, passando por quem per­deu tudo em razão de vícios ou circunstâncias alheias à vonta­de humana e não restou outra alternativa, chegando até rela­tos, acreditem, daqueles que optaram por morar sob mar­quises de prédios ou em praças das cidades sem ter enfrentado nenhum percalço.

A vida das pessoas em situ­ação de rua não é das mais fá­ceis. O alimento é obtido atra­vés da caridade da população ou de recursos do po­der público. A cama, muitas vezes, é o chão duro, papelões ou colchões velhos. As cober­tas, quando se têm, quase não protegem do relento ou são divididas com cães, que aca­bam sendo, em alguns casos, a única companhia em meio à insegurança das ruas. A vul­nerabilidade de fazer das vias públicas sua moradia torna-se ainda mais complicada com a chegada do inverno.

Ressalta-se que a pessoa em situação de rua não necessaria­mente é quem dorme embai­xo de marquises ou lonas, mas que, por definição, se sustenta ou passa mais tempo na rua do que em algum ambiente resi­dencial. Por exemplo: quem vende bala na sinaleira, traba­lha com reciclagem, ou transita na rua durante o dia, mas dor­me em um albergue, na Casa de Passagem ou em outro local emprestado.

Pessoas em situação de rua em números

Em Pelotas, 699 pessoas autodeclaradas, ou seja, que se cadastraram junto ao Ca­dastro Único (CadÚnico), vi­vem em situação de rua atual­mente, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS). O número representa 0,2% do total de habitantes do municí­pio, que é de 338.942 pessoas, conforme o censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geogra­fia e Estatística (IBGE). Já cerca de 80 pessoas realmente mo­ram na rua, dentre andarilhos e nômades que saem de Pelo­tas, vão e voltam para outros municípios. Neste caso, a taxa representa 0,02% do total da população pelotense.

Para o secretário de Assis­tência Social, Tiago Bündchen, a crise sanitária de Covid-19 colaborou para o crescimento do número de pessoas em situa­ção de rua. “Não só em Pelotas, mas é um cenário nacional, o aumento das pessoas em situ­ação de rua. A pandemia am­pliou e isso se reflete até hoje”, ressaltou.

Em diversos cantos da Prin­cesa do Sul, o cenário dos desa­brigados se mistura aos belos e requintados prédios históricos e também aos modernos em­preendimentos. A SMAS evidencia o crescimento da população de rua depois da pandemia em números. De acordo com a pas­ta, o Centro de Referência Es­pecializado para Pessoas em Situação de Rua, o Centro Pop, um dos serviços que presta as­sistência a pessoas em situação de rua, atendeu 371 pessoas em junho de 2020. Entre feve­reiro e março do mesmo ano, antes da crise sanitária, os aten­dimentos chegavam a 140 por mês. Na ocasião, isso represen­tou mais de 60% de aumento no número de pessoas que pro­curaram serviços como pessoas em situação de rua.

Intensificação das abordagens durante o inverno

O governo municipal afirma que tem intensificado as abor­dagens sociais para oferecer abrigo às pessoas em situação de rua e evitar que enfrentem as noites de inverno nas ruas. Além do Centro Pop, o acolhi­mento também acontece na Casa de Passagem, localizada junto ao prédio do Centro de Referência de Assistência So­cial (Cras) São Gonçalo, na rua Dona Darcy Vargas, nº 212.

As pessoas que aceitam se­rem acolhidas recebem alimen­tação, têm acesso a banho e a uma das 55 camas com traves­seiro e cobertores para passar a noite. Se necessário, ainda há 30 colchões para atender mais usuários, bem como ou­tros serviços ligados à psicolo­gia, assistência social e saúde. Os atendidos passam por um acolhimento inicial com revis­ta e planilhamento diariamen­te antes de entrarem. Em caso de pessoas muito idosas, inabilitadas ou doentes, é pos­sível a permanência no local também durante o dia. O es­paço abriga ainda os cães do público assistido e funciona a partir das 19h. O contato é o (53) 3199-8867.

Segundo Andreia Fernan­des, coordenadora da alta complexidade e dos abrigos municipais, a grande maioria dos usuários procura o lo­cal há anos, mas os demais também serão atendidos pela equipe em todas as suas de­mandas. Além disso, reforça que o enfoque do acolhimento é específico para pessoas em situação de rua no período no­turno. “Não abrimos mais cedo porque precisamos de um efe­tivo da guarda militar presen­te para fazer as revistas, retirar objetos cortantes, isqueiros e tudo que puder ser prejudicial aos outros”, explica. De acor­do com a coordenadora, esses cuidados são necessários de­vido às brigas internas entre os usuários.

Bündchen salienta que mui­tos preferem o Centro Pop, lo­calizado na rua Três de Maio, nº 1.070, no centro da cidade, que oferece café da manhã e da tarde, além de oficinas, ba­nho, roupas e guarda de per­tences. O espaço também é disponibilizado como endereço para receber correspondência e como endereço so­cial para fins de indicação de re­sidência para serviços de saúde, CadÚnico e outros que pedem endereço. O local, para aqueles que a equipe entende como ne­cessário, dá o encaminhamen­to para o Restaurante Popular, serviço que a Prefeitura pres­ta mediante contrato com a ONG Gesto. “Investimos cerca de R$ 1,2 milhão por ano para fornecer 400 refeições diárias no Restaurante Popular, 200 gratuitas e outras 200 a até R$ 4,00. Temos equipes de aborda­gem social, tanto terceirizadas, que são de duas ONGs, a Vale a Vida e a Gesto, quanto tam­bém a equipe do Centro Pop. E, agora, estamos recebendo os contratos administrativos para fazer um outro tipo de proje­to, o Hashtag Tamo Junto, que também faz abordagem social com equipes trabalhando 8h por dia, cinco educadores so­ciais e uma assistente social”, informou Bündchen.

O Centro Pop ainda disponi­biliza ao público o encaminha­mento de documentos e bene­fícios. O local abre de segunda a sexta-feira, das 8 às 17h. O te­lefone é o (53) 3199-8115.

Um dos locais de acolhimento oferecidos pelo município às pessoas em situação de rua é a Casa de Passagem, situada junto ao prédio do Cras São Gonçalo, na rua Dona Darcy Vargas, nº 212. (Foto: Julia Barcelos/JTR)

Como funciona a abordagem?

De acordo com o secretá­rio, as pessoas são abordadas na rua pelas equipes. A maio­ria são homens adultos; mui­tos deles, usuários de algum tipo de droga, incluindo álcool, e todos com os vínculos fami­liares desfeitos ou, no mínimo, abalados. Alguns revelam o desejo de se recuperar e voltar para junto da família. Outros têm a rua como casa.

Neste momento, são ofere­cidos todos os serviços dispo­níveis. Se a pessoa quiser sair de onde está, seja para dormir ou para almoçar, procura-se, em um primeiro momen­to, criar um vínculo, porque o intuito da abordagem é tentar retomar o vínculo familiar da pessoa em situação de vulne­rabilidade. Caso precise de ser­viços de saúde ou por depen­dência química, também são feitos esses encaminhamen­tos, sempre tentando criar re­lações para a confiança mútua entre equipe e pessoa assistida para, a partir daí, tentar o res­gate. São oferecidos os serviços do município, que incluem cur­sos de capacitação por meio do Capacitar Pelotas, entre outras iniciativas.

Os que não quiserem acom­panhar a equipe recebem um macacão impermeável para se proteger da chuva, água mine­ral e cobertores. Sobre a recu­sa em aceitar o acolhimento, Bündchen avalia que “as pes­soas estão sem esperança, sem perspectiva, muitas tiveram os vínculos familiares rompidos e só querem ficar isoladas, bus­cando como atenuante o uso de álcool e outras drogas. Uma parte também tem algum tipo de transtorno mental, o que di­ficulta o entendimento e a per­cepção de que utilizar os servi­ços é uma saída da condição em que se encontram”.

Somado a isso, muitos tra­balham à noite, coletando ma­teriais recicláveis ou cuidando carros, o que inviabiliza a ida para a Casa de Passagem, e o afastamento deles, mesmo que por apenas algumas noi­tes, pode fazer com que per­cam o ponto bom, onde já são conhecidos e costumam cuidar de carros, receber recicláveis e doações.

Apesar das dificuldades, o secretário vê perspectiva no trabalho. “O caminho é difícil, é demorado, mas precisamos começar. Já conseguimos ins­crever algumas pessoas nos cursos do Capacitar Pelotas e se elas concluírem terão novas possibilidades”, diz.

Tanto as pessoas em situa­ção de rua quanto em qualquer situação de vulnerabilidade podem acessar a Rouparia, no prédio da SMAS, na rua Marechal Deodoro, nº 404, onde ficam roupas, calçados e outras do­ações recebidas da comuni­dade. É necessário ser enca­minhado por um dos serviços de assistência social. Também são oferecidos cobertores a quem precisar.

Relato

Entre um dos assistidos pela Casa de Passagem está um ho­mem, de iniciais J.R.F.S, de 43 anos, que quebrou a perna em um acidente de bicicleta. Com o membro inferior ainda imóvel por pi­nos, J.R.F.S está sendo acolhido integralmente há pouco mais de um mês. O homem conta que frequentava abrigos des­de criança. “É que eu não me dava muito bem com minha mãe. Depois, mais velho, saí para aquele lado do bairro Fá­tima. Aí, comecei a frequentar uma rua, que até foi onde acon­teceu o meu acidente”, relem­bra. “Eu tinha bebido demais, acabei batendo e caindo da bi­cicleta. Agora, faz um mês que não bebo, quero deixar a bebi­da alcóolica”, afirmou.

Andreia conta que, princi­palmente no inverno, são re­alizadas ações com vans para buscar essa população e levar até a Casa de Passagem. Porém, muitos negam o acolhimento para permanecer na rua e po­der fazer uso de entorpecentes. “Nós identificamos que, hoje, a maioria das pessoas nessa si­tuação entraram nela por es­colhas próprias. Não porque não têm casa ou família, mas sim por não querer incomo­dar os familiares com essa es­colha deles de usar drogas”, acrescentou.

Dessa forma, mesmo com as baixas temperaturas dos úl­timos dias, muitos usuários de drogas nessas situações conti­nuam permanecendo na rua. Apesar disso, a coordenadora afirma que é notório o aumen­to de usuários nessa época do ano. Em dias normais, o núme­ro de acolhidos diários fica em torno de 50 a 60 pessoas. Já em dias muito frios ou chuvosos, essa quantidade pode chegar a 85 ou 90 acolhidos.

Quando perguntado sobre o acolhimento, J.R.F.S afirmou que tem sido muito bem tratado pela equipe, ainda mais nesse perío­do de frio e com sua perna inabilita­da. “Eu digo que elas são como mães para a gente”, salientou.

De acordo com a Secretaria de Assistência Social, 699 pessoas autodeclaradas, ou seja, que se cadastraram junto ao Cadastro Único (CadÚnico), vivem em situação de rua atualmente no município. (Foto: Samantha Beduhn/JTR)

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