Em 1984, o Rei e o Tremendão resumiram, de forma única, a principal atividade que não somente transporta o progresso do país pelos dois milhões de quilômetros de malha viária que atravessa os extremos do Brasil. Para essa função, a música escrita por Roberto Carlos e Erasmo Carlos homenageou, principalmente, aqueles os quais o JTR dá o título de “profissão saudade”, cuja rotina inspirou a dupla por ser apaixonante e, ao mesmo tempo, cercada de sentimentos, exaustiva e carente de reconhecimento devido ao que é pago pelo frete.
A estrofe que contém o verso “eu sei, vou correndo ao encontro dela, coração tá disparado, mas eu ando com cuidado, não em arrisco na banguela” hoje não sintetiza tal sensação no peito só deles toda vez que, por exemplo, ligam o rádio para espantar a solidão. Sim, há a exceção à regra, já que elas representam 4% entre os que cortam asfalto do Oiapoque ao Chuí, com a mesma competência ao volante de uma carga pesada.
Desta minoria fazem parte duas canguçuenses: Patrícia Oliveira e Gláucia Wachholtz, ambas de 26 anos, que, em dezembro, deixaram de cortar asfalto por estarem grávidas.
A entrevista começou com humor por conta das histórias que as caminhoneiras passaram já na primeira tentativa para obter a CNH de categoria E, necessária para conduzir caminhão.
O motivo para tal descontração é que tanto William Portelinha, de 36 anos, cara metade de Patrícia, quanto Jorge Haodt, também de 36, companheiro de vida de Gláucia, rodaram uma vez cada na prova para terem tal habilitação.
Ainda em comum entre as duas futuras mamães é que a atração pelo volante surgiu ao viajarem com seus maridos durante anos, sempre prestando atenção e questionando, inclusive, detalhes como os motivos que os levavam à redução de marchas, pontos essenciais para aprenderem e, consequentemente, obterem êxito no momento da prova junto aos examinadores do Detran.
Quando questionada, Patrícia busca palavras que permitam resumir a escolha profissional, afirmando que estar no banco do carona foi essencial para isso. “Estamos casados há cinco anos, mas desde a fase do namoro viajamos juntos”. Ao continuar, ela define o “algo a mais” que despertou a paixão exercida na cabine. “Me atraiu a liberdade e não ter uma rotina. Guiar um caminhão causa uma sensação inexplicável”, definiu.
Ao recordar sua primeira viagem, a caminhoneira confessa: “insegurança e algumas perguntas, entres elas, ‘será que consigo?’ Mas em praticamente todas as vezes o William vinha atrás, me acompanhando e me orientando pelo PX (rádio)”.
Tanto para Portelinha quanto para Haodt, ver a foto da família junto ao painel é motivo para certa emoção, sendo comum bater aquela vontade de estacionar e ir correndo ao encontro dela – como ainda cantou a música mencionada – ou até deles (filhos) e voltar para casa. Mas isso, até agora, nenhum dos dois experimentou até o momento, porém… “Já é tudo novo. Estou grávida, já não estou mais embarcando com ele, não vou guiar e ele vai sozinho. Virá a saudade, o medo, tanto da esposa quanto da mãe, mas a alegria de termos nossa guriazinha que, quem sabe, se tornará também uma caminhoneira”, brincou Patrícia.
Ao dar a necessária trégua das estradas, Gláucia, assim como a colega e amiga, viajou por 11 anos com o responsável por ensiná-la tudo que sabe sobre guiar caminhões, o que não poderia terminar de outra forma: casamento, enlace que já tem sete anos e que logo aí terá a primeira herdeira.
“Paro, pois o coração de mãe falou e continuará falando mais alto. Mas se tudo der certo, pretendo tornar viajar com o meu marido, mas agora, com nossa filha, isso é claro, quando ela tiver meses suficientes que permitam que, agora, os três estejam na boleia e dois ao volante, já que revezaremos durante os percursos”, projetou a futura mamãe.
E a estreia na primeira viagem carregada, como foi e onde foi? “Foi a partir do Porto de Rio Grande. Algo em torno de 200 quilômetros, transportando soja para Pantano Grande. Um nervosismo que permaneceu em mim todo tempo porque o caminhão não permite erros, uma vez que, se isso acontecer, ele quebra”, recordou.
Mas quanto a este mundo até então “habitado” só por homens, como é para ela? De acordo com Gláucia, há de tudo, até os abusados, termo usado pela caminhoneira ao definir alguns olhares que demonstram o desrespeito nos pontos de descanso, principalmente os postos de combustíveis por ela ser do sexo feminino.
“Já percebi isso quando necessitei viajar sozinha. Tem esses, os abusados. Mas a imensa maioria são respeitosos, amigos e que ajudam a gente, as mulheres. Me sinto inserida no meio”, afirmou.
Coube a Haodt encerrar a participação do casal na entrevista revelando uma decisão necessária, ao menos, nos primeiros meses após a chegada da filha e que permitirá manter-se mais próximo da cria e da esposa. “Concordo com a Gláucia: já é tudo novo. Elas ficarão, mas não lá para cima. Agora vou fazer rotas dentro do Estado e, assim, venho pra casa todos os finais de semana. Depois, na safra de inverno, se o bolso obrigar, aí não terei como não ir para outras regiões do país, na verdade, iremos”, corrigiu o motorista.