
A jornalista Cíntia Piegas elaborou uma ótima e justa homenagem ao colega, que transcrevo literalmente:
“Após quase 40 anos de dedicação ao Ministério Público, o promotor de Justiça Paulo Roberto Gentil Charqueiro, 66, natural de Jaguarão, se despede da carreira pública. Ele leva na bagagem grandes conquistas, principalmente para o patrimônio público de Pelotas, sua principal área de atuação.
Voltado também à preservação ambiental ao longo da atuação no Ministério Público (MP), contou com as parcerias das universidades Federal e Católica de Pelotas para defender suas denúncias e manter viva a fauna e a flora da cidade. Em sua última entrevista como promotor, ele conta quais foram os desafios da jornada e os planos para o futuro.
Como foi seu ingresso no MP?
Entrei em 1986 para o Ministério Público, na comarca de Pedro Osório. Depois fui para Severi, onde fiquei um ano em 88. Em 89, já em São Lourenço do Sul, acabei promovido para Bagé. Entre 89 e 90 me transferiram para Pelotas para ficar três meses. Logo fui promovido, mas recusei e estou aqui há 35 anos.
O que o senhor deixa de legado?
O poema de Mario Benedetti, El Puente diz: Para cruzarlo o para no cruzarlo ahí está el puente/ nunca he traído tantas cosas / nunca he venido con tan poco. Acho que são várias experiências, especialmente de tentar cumprir a missão do Ministério Público. Quando eu entrei, a atuação básica do MP era na área criminal e cível e de família. Com a Constituição de 1988, foram novas atribuições, no meio ambiente, por exemplo, e o consumidor. O perfil do Ministério Público modifica e são criadas promotorias da defesa comunitária para tratar dos direitos sociais, consumidor, meio ambiente, saúde, deficiente, do idoso e direitos humanos e improbidade administrativa, que se falava muito pouco.
Qual o caso mais marcante que o senhor atuou?
Não tem nenhum específico. Todos valeram a pena. Na área da preservação cultural, os prédios da volta da praça, por exemplo, estavam desabando. A própria Casa da Banha. Lembra do telhado? Nas casas geminadas, houve a denúncia de que estavam serrando piso para vender a madeira e as janelas sendo arrancadas. O mesmo ocorreu com a Casa de João Simões Lopes Neto.
Quem são os parceiros do Ministério Público?
Parceria: Universidade Católica de Pelotas. No início da promotoria de meio ambiente, com as verbas dos acordos, nós montamos um escritório de perícias técnico-ambientais. Se repassava valores e estrutura para exames de laboratório, por exemplo, para a realização de perícias, que é fundamental em caso de ação judicial ou até para saber o que cobrar do infrator. A UFPel foi de grande valia na preservação dos prédios históricos com laudos. O próprio município sempre colaborou com o Ministério Público, pois realizou ações conjuntas como a desocupação das vias públicas, ruas, canteiros centrais e praças. O caso do Rabicó, que tinha um estabelecimento ao lado do Altar da Pátria, nós recebemos uma denúncia de que os festejos farroupilhas estavam atrapalhando os negócios dele. O resultado foi que ele entendeu que tinha que sair.
Ficou alguma questão pendente que o senhor gostaria de ter realizado?
O prédio da Secretaria da Fazenda. Está comigo e não consegui levar adiante a recuperação. Parece que vai sair com o Sesc. Quando estiver pronto, vou me sentir recompensado. A gente sente bastante também que o MP participou – como caráter de prevenção – do plano diretor de Pelotas. Havia um plano com prevenção às cheias. Iniciamos uma ação de ocupação na área do dique do Laranjal, onde as pessoas tiravam areia para aterrar suas áreas. Naquela época se fez uma reunião com o IPH que alertou para os cuidados com aquela área, que ela pode ser ocupada, mas não de forma intensiva. Toda segurança hídrica da cidade está naquele dique, e se ele romper a água vai chegar na avenida Domingos de Almeida. O alerta foi feito com base na cheia de 1941. O que tememos é a modernização do plano diretor. Pelotas pode crescer, mas para a Zona Norte da cidade.
Qual o papel do Ministério Público atualmente?
Não existe Ministério Público se não existir o sistema democrático. O Ministério Público não sobrevive em regimes autoritários. Por isso, é importante a troca de informações entre o MP e a comunidade e com os acadêmicos. Uma das funções dos promotores, por exemplo, é traduzir os termos técnicos da Justiça, de uma ação, para a população entender.”
Resta-me acrescentar que trabalhamos juntos na Promotoria de Justiça de Pelotas e, ainda, acrescentar o caso do “arroz papel” que consta no meu livro “Tópicos da trajetória de Vilson Farias como: Delegado de Polícia, Promotor de Justiça e Advogado”.
O caso do “arroz papel”, como ficou conhecido na imprensa e na comunidade, dizia respeito a uma quadrilha atuante em todo o Rio Grande do Sul e responsável por fraudar o Estado em incríveis 2,8 bilhões de cruzeiros durante dois anos ao sonegar o Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) cobrados sobre o valor do arroz através da emissão de notas e créditos fiscais falsos.
Tomei conhecimento das primeiras informações sobre essa fraude bilionária quando ainda era Promotor em Arroio Grande, contudo, a falta de estrutura da Promotoria naquela comarca investigações de avançarem satisfatoriamente, pois não tinha um funcionário sequer para auxilar-me.
Em Pelotas, todavia, passei a me familiarizar mais com o tema e dedicar mais tempo ao tentar desembaraçar o emaranhado de relações existentes entre empresas e empresários suspeitos de protagonizar o esquema. Com o apoio da Secretaria Estadual da Fazenda foi feito um levantamento completo e técnico capaz de nos dar condições de entender como a fraude era executada, e, mais ainda, sobre quem eram o mentores e líderes do golpe.
A partir disso identificamos dez empresas fantasmas controladas por cinco pessoas: F.M.M., W.A., P.P.C.S., G.C. e também por um advogado.
Para desarticular este bando complexamente organizado foi preciso formar uma força-tarefa entre a Secretaria Estadual da Fazenda e o MP, na pessoa do Promotor de Justiça Paulo Roberto Gentil Charqueiro, além do apoio incondicional do Procurador Geral de Justiça, Francisco Luçardo e do próprio Governador Alceu Collares. Mais uma vez diferentes ógãos do Estado trabalhavam em conjunto trocando informações e realizando investigações com o objetivo de desarticular aquele que, tenho para mim, como um embrião do crime organizado brasileiro.
Durante meses trabalhamos em silêncio reunindo provas capazes de garantir o desmantelamento completo do bando e da fraude. E, como foi exatamente durante esse período que um fato inusitado resultou não prisão de um dos líderes do golpe, o advogado.
Certo dia o advogado líder do grupo procurou-me na Promotoria em busca de informações a respeito de um possível pedido de prisão contra os demais integrantes da quadrilha.
Coincidentemente, sobre minha mesa estavam os mandados de prisão contra todos os líderes do esquema. Diante da evidência de que informações sobre nossa operação haviam vazado não me restou outra saída senão dar-lhe voz de prisão ali mesmo na Promotoria. O tal advogado acabou recolhido ao quartel do 4º Batalhão de Polícia Militar, mas a notícia de sua prisão afugentou os outros quatro mentores.
Apesar da precipitação indesejada do desfecho da operação, nada menos do que 37 pessoas foram denunciadas e, por estar à frente daquela força-tarefa pedi o sequestro de todos os bens dos envolvidos entre os quais estavam apartamentos, cinco caminhões, duas casas, 11 veículos, dois prédios industriais, duas áreas de campo e 18 terrenos.
O processo, que se transformou no mais volumoso do Foro de Pelotas, contudo acabou emperrado devido o grande número de réus. Porém, restaram como consolo o fato do Estado ter reavido o montante desviado a partir da penhora dos bens sequestrados e, de ter nascido ali, uma forma de colaboração entre instituições que, hoje, se faz muito útil no combate ao crime organizado tanto no Rio Grande do Sul, como no Brasil, ou seja, de algum modo fizemos escola.
Também deve-se registrar que na época a legislação penal era frágil, pois para tais crimes não havia uma legislação dura como existe hoje, o que facilita o trabalho do Ministério Público e da Polícia, bem como ao Juiz na aplicação da pena.
Resta-me desejar ao amigo Charqueiro, que seja feliz junto à sua linda família, mas que não pare por aí, pois a advocacia se orgulharia em recebê-lo.