Márcia, uma menina de 7 anos, vem para a consulta acompanhada de sua mãe por sofrer de desmaios. A mãe, uma jovem senhora de cabelos amarelados, voz grave, pele maltratada exala forte odor de tabaco e segura tensamente a mão da filha. A filha, aquela figura magricela, de cabelos negros lisos e compridos, com olhos castanhos meigos e tímidos, examina com serena curiosidade o ambiente.
Me conta a mãe a seguinte história: – Márcia tinha uma irmã de 9 anos cujo maior sonho era ter um pônei. No dia do aniversário da irmã, o pai reuniu de surpresa a família e se dirigiram ao estábulo. Pediu para aguardarem e foi buscar o tão esperado presente, um pônei todo branco com crinas compridas e olhar inquieto. Já estava selado e o pai o trazia puxando pelos arreios.
Era impossível imaginar a felicidade e o contentamento da menina. Em seguida, o pai a ajudou a montar. Porém, mal a menina se acomodou na sela, quando subitamente desfaleceu, caiu do cavalo, bateu com a cabeça no chão e ficou desacordada. Foi levada às pressas ao hospital, mas não sobreviveu.
Desde então, Márcia começou a ter desmaios, às vezes com convulsões, sempre que submetida a fortes emoções. Assim aconteceu quando ganhou de presente uma bicicleta e teve um desmaio prolongado sendo então atendida no Pronto Socorro. Episódio semelhante aconteceu quando repreendida pela mãe por ter feito travessura. Neurologistas e clínicos vários a tratam com remédios para epilepsia, mas sem sucesso.
No exame cardiológico, mais precisamente através do eletrocardiograma, se fez o diagnóstico: Síndrome do QT longo. Trata-se de anomalia congênita, de transmissão genética, que propicia o aparecimento de arritmias malignas que podem causar desmaios, convulsões e até a morte. Márcia tinha 7 anos quando começou o tratamento com medicamentos. Aos 9, teve que implantar um marca-passo cardíaco que, associado aos medicamentos, conseguiu controlar com sucesso seus desmaios.
Na análise retrospectiva da morte da irmã, concluímos tratar-se do mesmo problema. Não teria sido a queda do pônei a causa da morte, mas sim a arritmia estimulada pela excitação da alegria do presente que acabara de receber. Até porque a mãe referia que Márcia com seus desmaios lembrava o que acontecia com a irmã, mesmo antes do final.
Márcia, pela alta probabilidade de transmissão genética, teve a recomendação de não engravidar. Aos 20 anos, contra todas as orientações, apareceu grávida, gravidez desejada e por ela perseguida.
Na década seguinte, em suas consultas, falava da filha, que era normal e se desenvolvia bem. Até que um belo dia a vejo entrar para revisão trazendo pela mão uma menina que era uma cópia sua, mesmos cabelos negros longos e lisos, mesmo olhar meigo e sereno. Para minha surpresa, queria que eu a avaliasse, pois, até então, por medo ou zelo, nunca fizera um eletrocardiograma. Para meu espanto e contentamento o eletrocardiograma foi normal.
Nos despedimos com um abraço emocionado pela boa notícia. Ao fechar a porta ainda comovido com a alegria do momento, não pude evitar de pensar: “Pônei maldito ou bendito pônei”.
Ciro José Mombach
Médico
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