A vida por um pônei

Ciro José Mombach, médico. (Foto: Divulgação/Arquivo pessoal)

Márcia, uma menina de 7 anos, vem para a consulta acom­panhada de sua mãe por sofrer de desmaios. A mãe, uma jovem se­nhora de cabelos amarelados, voz grave, pele maltratada exala for­te odor de tabaco e segura ten­samente a mão da filha. A filha, aquela figura magricela, de cabe­los negros lisos e compridos, com olhos castanhos meigos e tími­dos, examina com serena curio­sidade o ambiente.

Me conta a mãe a seguinte história: – Márcia tinha uma irmã de 9 anos cujo maior sonho era ter um pônei. No dia do aniversá­rio da irmã, o pai reuniu de sur­presa a família e se dirigiram ao estábulo. Pediu para aguardarem e foi buscar o tão esperado pre­sente, um pônei todo branco com crinas compridas e olhar inquie­to. Já estava selado e o pai o tra­zia puxando pelos arreios.

Era impossível imaginar a feli­cidade e o contentamento da me­nina. Em seguida, o pai a ajudou a montar. Porém, mal a menina se acomodou na sela, quando subi­tamente desfaleceu, caiu do ca­valo, bateu com a cabeça no chão e ficou desacordada. Foi levada às pressas ao hospital, mas não sobreviveu.

Desde então, Márcia começou a ter desmaios, às vezes com con­vulsões, sempre que submetida a fortes emoções. Assim aconteceu quando ganhou de presente uma bicicleta e teve um desmaio pro­longado sendo então atendida no Pronto Socorro. Episódio se­melhante aconteceu quando re­preendida pela mãe por ter feito travessura. Neurologistas e clíni­cos vários a tratam com remédios para epilepsia, mas sem sucesso.

No exame cardiológico, mais precisamente através do eletro­cardiograma, se fez o diagnós­tico: Síndrome do QT longo. Tra­ta-se de anomalia congênita, de transmissão genética, que propi­cia o aparecimento de arritmias malignas que podem causar des­maios, convulsões e até a mor­te. Márcia tinha 7 anos quando começou o tratamento com me­dicamentos. Aos 9, teve que im­plantar um marca-passo cardíaco que, associado aos medicamen­tos, conseguiu controlar com su­cesso seus desmaios.

Na análise retrospectiva da morte da irmã, concluímos tratar-se do mesmo problema. Não teria sido a queda do pônei a causa da morte, mas sim a arritmia estimu­lada pela excitação da alegria do presente que acabara de receber. Até porque a mãe referia que Már­cia com seus desmaios lembrava o que acontecia com a irmã, mes­mo antes do final.

Márcia, pela alta probabilida­de de transmissão genética, teve a recomendação de não engra­vidar. Aos 20 anos, contra todas as orientações, apareceu grávi­da, gravidez desejada e por ela perseguida.

Na década seguinte, em suas consultas, falava da filha, que era normal e se desenvolvia bem. Até que um belo dia a vejo entrar para revisão trazendo pela mão uma menina que era uma cópia sua, mesmos cabelos negros longos e lisos, mesmo olhar meigo e sere­no. Para minha surpresa, queria que eu a avaliasse, pois, até en­tão, por medo ou zelo, nunca fi­zera um eletrocardiograma. Para meu espanto e contentamento o eletrocardiograma foi normal.

Nos despedimos com um abraço emocionado pela boa no­tícia. Ao fechar a porta ainda co­movido com a alegria do momen­to, não pude evitar de pensar: “Pônei maldito ou bendito pônei”.

Ciro José Mombach

Médico

(53) 99982-3387

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