
Criança ainda, saía do colégio caminhando com meus colegas pela rua XV de Novembro e, invariavelmente, ia ao consultório do meu pai – na mesma rua – onde fazia hora para ir com ele para casa.
Naquela época, além da sala que ele ocupava, havia outra, contígua, onde atuava um colega dele, antigo dentista de Pelotas, também reconhecido por ser exímio protético.
Era um verdadeiro artista, diziam, a fama lhe fazia jus.
Era um senhor solene, de idade, sempre focado nas suas brocas barulhentas e em seus pacientes constantes.
Ainda lembro bem o barulho “fininho” que já se ouvia no começo do corredor (zimmmmzimmmmzimmm), que por costume não me assustava, mas que apavorava tanta gente só de ouvir aquela broquinha escandalosa.
Esse profissional tinha uma característica física que o distinguia dos demais: era um dentista dentuço.
Naquela época, era corriqueiro encontrar pessoas com dentes proeminentes. Hoje, teríamos dificuldade em achar algum para cumprir tarefa em busca de pontos de alguma gincana. Pensando bem, teríamos muita dificuldade em achar também alguma gincana.
Naqueles dias, recém estavam surgindo no Brasil os aparelhos ortodônticos. E eram corriqueiros os artistas dentucinhos, qual Virgínia Lane, atriz de teatro de revista e de 37 filmes disponíveis para quem quiser conferir.
Havia até a Mônica, das publicações do Maurício de Souza, heroína dentucinha das revistas em quadrinhos, tentando fazer justiça com arremessos de seu coelho de pelúcia azul, também dentuço.
Um certo dia, cheguei correndo em meio àquela algazarra que me trazia do colégio e visualizo o velho dentista com sua dentadura superior na mão, fazendo pequenos ajustes. Perplexo, fingi não ter notado e fui para a sala do pai, onde pude contar a ele a nova surpresa que a vida me revelava: nosso amigo usava uma chapa dentuça!
Meu pai pediu que eu ficasse quieto, que fosse discreto e me explicou: desde sempre, nosso amigo tinha dentes bem pronunciados para a frente. E era feliz com eles, não era algo que o desmotivasse.
Com a passagem do tempo, caiu um dente aqui, surgiu um pivô ali e chegou um dia em que só uma prótese caberia no lugar daquela gasta arcada dentária.
Como ele tinha, em tempo hábil, feito um molde de seus dentes naturais, nosso amigo optou por reproduzir em sua prótese exatamente aquela característica que o acompanhava desde sempre.
E ficou tão bem feita que ninguém percebia que aquele artista usava uma chapa dentuça, a qual não denunciava a ausência de dentes naturais em sua boca.
Poderia ter feito um conjunto de dentes bem alinhados, mas preferiu manter sua identidade, com seu sorriso de sempre, sem alertar quem quer que fosse sobre seus dentes artificiais.
Fiquei encantado. Eram outros tempos, realmente.
O cara era realmente um artista, ia muito além do que eu poderia imaginar na minha pouca idade.
Ele já faleceu faz muitos e muitos anos, lembro de ter ido ao seu velório, da sua expressão serena de dever cumprido, bem arrumado naquele sóbrio e distinto esquife, com seus artísticos dentes saindo serenamente da sua boca, agora silente.
Eram outros tempos.
*José Henrique Medeiros Pires é Licenciado em Estudos Sociais pelo ICH UFPel, Especialista em Políticas Públicas pela Universidade de Salamanca, Espanha e jornalista e radialista