Com a pandemia do coronavírus, antigos problemas voltaram à tona ou surgiram, como a fome. Em menos de um ano o número de brasileiros que passam fome aumentou 14 milhões, de 19,1 milhões para 33,1 milhões, ou seja, 15,5% da população. O dado está presente no 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar Nutricional (Rede PENSSAN).
No estados do Sul do país, a condição é mais amena do que no restante do país, mas não deixa de ser preocupante. Duas em cada dez famílias convive com insegurança alimentar moderada ou grave. E na região, aqueles que mais sofrem com a falta de alimento são as crianças, as mulheres e a população negra. Nesse sentido, há o surgimento de coletivos e alternativas para ajudar a controlar uma outra pandemia, que é a fome, como é o caso do coletivo Um de Nós, em Pelotas.
Todos os sábados a partir das 12h, na praça Dom Zattera, bem no centro do município, são distribuídas mais de 60 marmitas. Antes mesmo do grupo chegar ao espaço com o alimento, uma fila gigante já se forma. Elisa Mesquita, uma das participantes do coletivo, destaca perceber que as pessoas se acostumaram a lidar com a invisibilidade de vulneráveis e que sua ação, mesmo que singela, se transforma em um grande impacto para quem é assistido.
“Você se acostuma ver alguém na calçada, acostuma ver alguém passando fome, passa reto e acaba não olhando. E o Um de Nós, além de dar atenção, mesmo que seja uma vez por semana, na questão das quentinhas, faz uma manutenção mais acirrada, assiste às pessoas e a elas traz uma luz”, disse.
“Você morre de fome ou vai roubar?”. Essa é uma frase do Aliado G, rapper paulista que é referência inicial para o Um de Nós, que começou após questionamento de pessoas que saíram das periferias e viam, através das letras de rapper, a necessidade de ocupar lugares e ajudar pessoas.
“A Um de Nós nasce para gente poder sentar com as pessoas em situação de rua e praticar a equidade e igualdade, entender que precisamos obter direitos e temos que buscar. Para isso, é preciso estar ombreados com eles para se ter mais força coletivamente. Nasce para reivindicar direitos e reforçar deveres.”, afirma César Brisolara, co-criador do grupo.
Muitas vezes, a ação social é atravessada pelo trabalho e o cansaço do dia a dia. Letícia Ribeiro, uma das participantes mais antiga, divide que nos sábados, depois de uma semana cansativa de trabalho, a única força que faz ela ir ajudar no preparo das marmitas é saber da gratidão daqueles que recebem.
“No Natal e Ano Novo, que a gente fez na véspera, muitos pediram até pra levar porque disseram que ia ser a ceia deles. Pra gente, se tu parar pra pensar, não é nada. A gente vem aqui, fica umas horinhas e essas horinhas acabam sendo superimportantes para essas pessoas que tão lá esperando a comida. Então um ‘muito obrigado’, o ‘que Deus te abençoe’, a expressão deles de agradecimento, é muito importante”, destaca.
O coletivo se sustenta por meio de arrecadações dos próprios participantes, mas uma ação tão próspera vai longe e acaba chamando atenção para novos voluntários. Esse é o caso de Júnior Oliveira, que conheceu o grupo através das redes sociais. Hoje ele doa semanalmente um saco de arroz e ajuda na distribuição do alimento. Além disso, afirma que faz da gratidão das pessoas seu pagamento.
E o reconhecimento é apontado por quem é beneficiado com a ação. “A ajuda que eles dão para todo mundo é fora de série, não tenho nem o que dizer”, resumiu um homem de 61 anos, em situação de rua, que preferiu não revelar sua identidade.